Muitas vezes, nós, operadores do Direito, nos deparamos com a seguinte situação: o acusado efetuou disparos de arma de fogo, causando a morte da vítima. Diante disso, questiona-se: ele é responsável por homicídio e por portar ilegalmente a arma? É nesse momento que surge o chamado princípio da consunção.
Inserido em vários cenários e possuindo relação com diversos crimes, o princípio da consunção é tema do dia a dia forense, em especial do advogado criminal. Trata-se de princípio inserido no bojo do conflito aparente de normas, cujo objetivo é dar fluidez ao sistema normativo penal em si.
Isso significa que todo o sistema deve ser harmônico, não havendo a aplicação de duas normas em conjunto, o que poderia gerar uma dupla punição ou o chamado bis in idem.
Diante disso, o objetivo desse artigo é trazer luz ao importante tema do princípio da consunção, abordando seu aspecto como método de solução do conflito aparente de normas, bem como sua aplicabilidade prática na vivência da advocacia.
Continue a leitura! 😉
O que é princípio da consunção?
O princípio da consunção vem definido pela terminologia latina “lex consumens derogat legi consumptae” e determina que quando uma norma definidora de um crime passe por fases que são consideradas crimes em outra norma, a primeira absorve a segunda.
Isso significa que o bem jurídico menos extenso ou de menor valor já está salvaguardado por aquele de maior valor ou mais extenso. Assim, o bem maior protege também o menor.
Desta forma, o princípio da consunção visa a solução de conflito aparente de normas e pressupõe a existência de ilícitos penais chamados “consuntos”, que servem de fases preparatórias ou de execução, anteriores ou posteriores, de outro delito mais grave consuntivo.
Fica assim por este absorvido, nos termos do brocardo lex consumens derogat legi consumptae, isto é, a lei consuntiva derroga a lei consunta.
Vê-se que pelo princípio da consunção, também conhecido como princípio da absorção, ainda que praticadas duas ou mais condutas subsumíveis a tipos legais diversos, pune-se apenas uma conduta, restando as demais absorvidas, quando estas constituam meramente partes de um fim único.
Quais crimes se aplica o princípio da consunção?
O princípio da consunção é aplicado a inúmeros crimes. Porém, talvez o mais famoso e discutido seja o crime de estelionato e o documento falso.
Discute-se acerca do enquadramento típico da conduta do sujeito que falsifica um documento (público ou particular) e, posteriormente, dele se vale para enganar alguém, obtendo vantagem ilícita em prejuízo alheio.
Nesse caso, em tese, há dois crimes: estelionato e falsidade documental (CP, art. 171, caput, e art. 297 – documento público, ou art. 298 – documento particular).
Diante disso, qual seria a responsabilidade penal do agente?
Estelionato e falsidade documental
Ciente da existência de inúmeras correntes e posicionamentos, hoje a posição que sobressai é aquela adotada pela súmula 17, do Superior Tribunal de Justiça.
Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido”.
O crime-fim (estelionato) absorve o crime-meio (falsidade documental), desde que este se esgote naquele, isto é, desde que a fé pública, o patrimônio ou outro bem jurídico qualquer não possam mais ser atacados pelo documento falsificado e utilizado por alguém como meio fraudulento para obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio.
A grande crítica a essa súmula vem pelo fato de a pena do documento público falso ser maior do que aquela atribuída ao estelionato.
Diante disso, o questionamento fica com relação à absorção de um crime mais grave por um menos grave, o que contraria o próprio princípio em si.
Nesse sentido, em já antigo julgamento, o Superior Tribunal de Justiça aplicou a referida súmula, conforme se observa abaixo.
Percebe-se, portanto, que até hoje o Superior Tribunal de Justiça aplica a referida súmula, apesar das críticas realizadas pela doutrina.
Homicídio e porte ilegal de arma de fogo.
Outra situação de aplicação do princípio da consunção envolve os crimes de homicídio e porte ilegal de arma de fogo. Nesse caso, o crime de homicídio encontra-se descrito no famoso artigo 121, do Código Penal.
Por sua vez, o porte legal de arma de fogo, encontra-se descrito no artigo 14, da Lei 10.826/2003.
Importante deixar registrada a possibilidade de alteração típica, seja pela aplicação do homicídio qualificado, nas hipóteses do artigo 121, §2º, do CP, seja pela aplicação do artigo 16, da Lei 10.826/2003, quando a arma de fogo for de uso restrito ou proibido.
Com efeito, nessa situação a jurisprudência entende pela possibilidade de aplicação do princípio da consunção, desde que tal discussão seja levada ao Tribunal de Júri e os jurados assim entendam.
Além disso, é necessário que as condutas tenham sido praticadas em um mesmo contexto fático, guardando entre si uma relação de dependência ou de subordinação. Assim, o porte da arma de fogo deve ter como fim exclusivo a prática do crime de homicídio para ser absorvido como fato anterior impunível.
Ausente essa vinculação com o crime fim, não há falar em consunção, havendo, pois, crime autônomo de porte ou posse de arma de fogo.
Nesse sentido:
Diante disso, resta clara a possibilidade de aplicação do princípio da consunção nos crimes de homicídio e porte ilegal de arma de fogo, desde que clara a relação de dependência ou de subordinação entre as condutas. Assim, o porte de arma de fogo deve ser destinado, de modo claro e objetivo para a prática do crime de homicídio.
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Aproveitar desconto *Confira o regulamentoQuando não se aplica o princípio da consunção?
A jurisprudência tem entendido que nos casos envolvendo embriaguez ao volante – artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor – artigo 303, do Código de Trânsito Brasileiro, resta inaplicável a aplicação do princípio da consunção.
Nesse caso, em específico, se tem dois crimes distintos, cujas ações penais são iniciadas de modos diversos. O crime de conduzir veículo automotor sob influência de álcool é de ação penal pública incondicionada e o bem jurídico tutelado é a incolumidade pública.
Enquanto no delito de lesão corporal, o bem jurídico tutelado é a integridade física da vítima que pode ou não autorizar o início de ação penal, não podendo o crime de ação penal pública estar sujeito à conveniência do particular.
Além disso, o delito de direção sob o efeito do álcool não é menos grave, até porque tem pena máxima superior, e não constitui fase preparatória ou meio normal para a prática do delito de lesão corporal na condução de veículo automotor.
Nesse sentido, temos recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sobre o tema.
Dessa forma, a jurisprudência é firme no sentido de inaplicabilidade do princípio da consunção, aos crimes de embriaguez ao volante – artigo 306, do Código de Trânsito Brasileiro, e lesão corporal culposa na direção de veículo automotor – artigo 303, do Código de Trânsito Brasileiro.
Jurisprudência do STJ em recurso repetitivo sobre o princípio da consunção
O Superior Tribunal de Justiça, em agosto de 2016, realizou o julgamento do tema repetitivo n.º 933.
O referido tema versa sobre a aplicação do princípio da consunção aos crimes de descaminho – artigo 318, do CP – e uso de documento falso documento falso – artigo 304, do CP.
No referido julgado, o Superior Tribunal de Justiça entendeu pela aplicação do princípio da consunção, fixando a seguinte tese:
Delimitada a tese jurídica para os fins do art. 543-C do CPC, nos seguintes termos: Quando o falso se exaure no descaminho, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido, como crime-fim, condição que não se altera por ser menor a pena a este cominada”.
Tal situação se aplica, uma vez que o delito de uso de documento falso, cuja pena em abstrato é mais grave, pode ser absorvido pelo crime-fim de descaminho, com menor pena comparativamente cominada, desde que etapa preparatória ou executória deste, onde se exaure sua potencialidade lesiva.
Resolve-se o conflito aparente de normas, neste caso, pelo critério da consunção, de modo que um tipo penal descarta o outro porque consome ou exaure o seu conteúdo proibitivo, isto é, porque há um fechamento material.
Em outras palavras, verifica-se que o conteúdo de injusto principal consome o conteúdo de injusto do tipo secundário, porque o tipo consumido constitui meio regular (e não necessário) de realização do tipo consumidor, sendo irrelevante que a pena em abstrato cominada ao tipo consumido seja superior àquela imposta ao tipo consumidor.
É importante destacar que o próprio STJ já se pronunciou no sentido de não ser obstáculo para a aplicação do princípio da consunção, a proteção de bens jurídicos diversos ou a absorção de infração mais grave pelo de menor gravidade.
Nesse sentido:
Tem-se, portanto, a aplicação do princípio da consunção ao delito de descaminho e uso de documento falso, em especial quando um tipo penal constitui meio para a prática do outro crime.
Conclusão:
O presente artigo teve por objetivo analisar o conceito do princípio da consunção. Analisou o conceito, bem como a sua aplicabilidade como meio de solução de conflito aparente de normas.
Houve, ainda, a análise da aplicação prática do princípio da consunção, em algumas situações em que a jurisprudência dos tribunais superiores, em especial STJ, já firmaram entendimento.
Por outro lado, analisou-se a não aplicação do princípio da consunção e os motivos pelos quais inaplicável ao citado caso concreto.
Ao fim, discutiu-se a aplicação do princípio da consunção, frente à julgado afeto ao rito dos julgamentos repetitivos pelo Superior Tribunal de Justiça, tratando-se de importante julgado para a comunidade criminal.
Assim, observa-se que o princípio da consunção constitui importante instrumento prático à vivência do aplicador do direito, em especial por envolver questões práticas e essenciais ao dia a dia forense.
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Conheça as referências deste artigo
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Advogado Criminalista com ênfase no Tribunal do Júri e Professor do Instituto de Ensino Superior e Formação Avançada de Vitória (IESFAVI); Pós graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera - Uniderp, graduado em Direito pela Universidade Jorge Amado....
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