Comoriência é quando duas ou mais pessoas morrem juntas ou em circunstâncias semelhantes, geralmente influenciando questões legais de herança.
Infelizmente tem sido cada vez mais comum no Brasil a ocorrência de desastres ambientais, tais como enchentes, deslizamentos de terra e tempestades, que além de trazer consequências negativas para a população, podem resultar em óbitos das pessoas afetadas.
Esses desastres já alcançaram 93% dos municípios brasileiros nos últimos dez anos conforme levantamento realizado pela Confederação Nacional dos Municípios, com uma média de três desastres por dia no ano de 2023, o que não leva em conta os desastres decorrentes de ação humana (incêndio, acidentes, dentre outros), cujo número será ainda maior.
Portanto, torna-se cada vez mais importante abordar o instituto da comoriência que poderá ocorrer nessas tristes situações, quando não há clareza sobre o momento dos óbitos, e que estabelece uma única exceção à regra geral de sucessão.
O que é comoriência?
Podemos definir a comoriência como a presunção jurídica dada pela lei quando ocorre a morte simultânea de duas ou mais pessoas, em que não é possível identificar quem teria falecido primeiro.
Em outras palavras, se pessoas da mesma família vierem a óbito no mesmo momento (naufrágio, queda de avião ou deslizamento de terras, por exemplo) e não seja possível verificar de forma segura quem morreu primeiro, a lei estabelecerá uma regra geral e presume que ambos morreram simultaneamente, conforme previsão no artigo 8º do Código Civil, abaixo:
Art. 8º. Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.
Para que serve a comoriência?
Esta previsão surgiu para garantir uma maior segurança jurídica neste tipo de situação e para estabilizar uma expectativa social, de modo a evitar discussões judiciais e longa avaliação probatória para identificar a hora do óbito. Portanto, existindo dificuldades e insegurança científica para determinar o momento exato da morte, deve ser aplicada a presunção.
Embora a legislação não exija que as pessoas possuam um vínculo familiar, referida previsão só traz reflexos jurídicos e econômicos se entre essas pessoas existia uma ligação sucessória, não sendo necessário que estejam juntas no mesmo local ou que tenham vindo a óbito em razão do mesmo evento, mas desde que tenham falecido na mesma ocasião.
Importante esclarecer que essa comoriência não está limitada à desastres naturais ou acidentes, mas igualmente pode acontecer como uma consequência de uma conduta criminosa, gerando efeitos para os sucessores conforme recente julgado proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Portanto, quando falamos de comoriência o tempo não é estritamente relevante, mas sim a segurança e simultaneidade, pois embora minutos ou segundos sejam suficientes para definir a ordem sucessória, estes devem ser atestados de maneira técnica, fidedigna e científica, pois se não houver segurança suficiente, ocorrerá a presunção.
Quais os efeitos da comoriência no direito sucessório?
Quando trazemos essa aplicação ao direito sucessório, a distinção da hora da morte é essencial para a distribuição e transmissão dos bens e direitos, pois pelo princípio da saisine, o momento do falecimento indica a abertura da sucessão e a transmissão da herança (ainda que o inventário e formalização ocorra depois), portanto, a ordem de quem falece primeiro tem grande importância jurídica e econômica.
Ainda, tendo em vista que o cônjuge ou companheiro, independentemente do regime de bens, é reconhecido como herdeiro necessário (artigo 1.829, I e 1.845 do Código Civil), tem-se que a ordem da sucessão legítima pode alterar completamente o destino final dos bens.
Como exemplo, imagine que um casal que não tem pais ou filhos vivos vem a falecer em um acidente, mas o homem morreu primeiro. Neste caso, seus bens serão integralmente herdados por sua esposa (uma parte por meação e outra por herança) e depois os herdeiros da esposa (irmão, por exemplo) receberão a totalidade deste patrimônio.
Neste cenário, como não existem outros herdeiros ascendentes ou descendentes (pais ou filhos), a esposa (cônjuge ou companheira) receberá o total do patrimônio independentemente do regime de bens da união, pois seja a título de meação ou herança, o destino será o mesmo.
Ou seja, pela regra atual da sucessão, o irmão deste homem que faleceu primeiro não herdaria nada e o mesmo cenário ocorreria se fosse o contrário (com a esposa falecendo primeiro), de modo que os bens não ficariam no seio familiar.
Assim, ao contrário de outras legislações que estabelecem regras específicas para as mortes simultâneas, atribuindo diferenciações para homens e mulheres ou em razão da idade (como na legislação francesa), o Direito Brasileiro concluiu pela criação de uma regra geral em que inexiste a transmissão de direitos hereditários entre os comorientes.
Isso significa que a ordem de vocação hereditária deve ser interpretada retirando a sucessão, ou seja, retirando a transferência de bens e direitos entre os comorientes (as pessoas que faleceram simultaneamente).
Em outras palavras, no exemplo acima do casal, o irmão de cada um (considerando a ausência de ascendente e descendente) receberia apenas a parcela do bem de seu irmão/irmã, sem nenhuma parcela do cunhado, como destaca a jurisprudência:
Em outro exemplo, se os comorientes fossem um pai e seu filho “B” (queda de avião, por exemplo) em que restaram vivos a esposa do pai (mãe) e outro filho “A”, a herança deste pai será dividida entre a esposa e seu filho “A”, enquanto que a herança do filho morto “B” será integralmente direcionada a sua mãe.
Em razão desta regra que afeta a sucessão tradicional, é relativamente comum na aplicação da comoriência que os familiares prejudicados busquem judicialmente comprovar a ordem do óbito, como uma forma de evitar essa presunção, mas que exige demonstração idônea e segura, conforme decisão abaixo:
Exemplo: Filme “A Sociedade da Neve”, da Netflix
Ao afastar no caso acima a prova exclusivamente testemunhal para comprovar o momento da morte, podemos concluir, hipoteticamente, que no famoso caso dos sobreviventes da Cordilheira dos Andes e que virou o filme “A Sociedade da Neve”, aqueles que não sobreviveram poderiam ser considerados comorientes, pois ainda que os sobreviventes pudessem identificar a cronologia dos óbitos, não seria possível essa comprovação científica.
Isso porque, o diagnóstico científico que determina o tempo exato do óbito, representado pela paralização da atividade cerebral, circulatória e respiratória, só pode ser realizado por um médico legista, conforme sustenta Carlos Roberto Gonçalves.
Portanto, entender a existência da comoriência e seus efeitos é extremamente importante nos dias atuais, inclusive para permitir que essas situações sejam previstas em eventual planejamento sucessório.
Conclusão
Como visto acima, a ocorrência de desastres e acidentes podem configurar a multiplicidade de óbitos e de acordo com o princípio da saisine, a ordem nestes falecimentos é importante para o direito quando se tratar de pessoas com vínculos familiares.
No entanto, na medida em que esses momentos não possam ser cientificamente atestados, tem-se a presença da comoriência, cuja regra excepcional de presunção afasta a ordem de sucessão legítima e protege os demais herdeiros de cada um de forma individual.
Essa proteção, além de conferir rapidez e segurança jurídica às partes, pode evitar incongruências quando ocorrer o falecimento de diversos membros da mesma família, como se viu durante a pandemia, em que os bens (a depender do caso) acabaram sendo direcionados para fora do seio familiar.
Perguntas e respostas frequentes sobre o tema
O que é comoriência?
Comoriência é um conceito legal que se aplica quando duas ou mais pessoas morrem ao mesmo tempo ou em circunstâncias que tornam impossível determinar a ordem de suas mortes.
Como a comoriência é tratada legalmente?
Legalmente, geralmente se presume que essas pessoas morreram ao mesmo tempo para fins de herança e outras questões de sucessão. Isso pode ser relevante para a aplicação de testamentos e a distribuição de bens.
Como a comoriência afeta a sucessão de bens?
Na presença de comoriência, a lei pode estipular que cada pessoa deve ser considerada como tendo pré-falecido à outra para fins de sucessão. Isso significa que nenhum dos comorientes pode herdar do outro, e os bens de cada um serão distribuídos como se o outro já estivesse morto, geralmente de acordo com seus respectivos testamentos ou as leis de sucessão intestada.
Qual é o impacto da comoriência em seguros de vida e outros contratos?
Para seguros de vida e outros contratos que dependem da ordem de morte, a comoriência pode complicar a determinação de quem é o beneficiário legítimo. Muitas apólices de seguro têm cláusulas específicas que tratam da comoriência, frequentemente requerendo que o beneficiário sobreviva ao segurado por um período específico para ter direito ao benefício.
Como posso provar a comoriência em um caso judicial?
Provar comoriência geralmente requer evidências médicas ou forenses que mostrem que as mortes ocorreram simultaneamente ou em circunstâncias que tornam impossível determinar a ordem exata das mortes. Testemunhas oculares, registros médicos e relatórios de autópsia podem ser fundamentais.
Quais são as implicações éticas ao lidar com casos de comoriência?
Advogados que lidam com casos de comoriência devem estar cientes das complexidades éticas, especialmente no que diz respeito à representação de múltiplos clientes potencialmente afetados pela mesma situação de morte. É crucial manter a imparcialidade e garantir que os interesses de todos os clientes sejam adequadamente representados sem conflitos de interesse.
Assine grátis a Aurum News e receba uma dose semanal de conteúdo no seu e-mail! ✌️
Mais conhecimento para você
- Tire suas dúvidas sobre a Lei do Estágio (Lei 11.788/08)
- O que é e quais são os tipos de contencioso tributário?
- TUDO que você precisa saber sobre as eleições municipais de 2024
- Entenda como funciona a sociedade em nome coletivo
- Alvará Judicial: O que é, como funciona e qual o valor?
- Empresa Familiar: O que é, Tipos e Implicações Legais
- Legislação Aduaneira: Guia Completo para Entender e Navegar no Comércio Exterior Brasileiro
- Processo administrativo previdenciário: conheça todas as etapas!
- Previdência privada: como funciona e atuação do advogado
- Por que a comoriência é importante para o Direito Sucessório?
- Arbitragem Empresarial: Como usar para a resolução de conflitos empresariais
- O que é e como fazer um acordo judicial: Guia Completo [+Modelo]
- Tire as principais dúvidas sobre prescrição e decadência previdenciária
- Ação de Impugnação de Mandato Eletivo: o que é, quando cabe e quem julga?
- Adjudicação Compulsória Extrajudicial: como funciona, quanto custa e mais
- O que é abandono de incapaz e o que diz a lei
- Contrato de trabalho temporário: o que diz a lei trabalhista e como funciona! [+Modelo]
Conheça as referências deste artigo
AGÊNCIA BRASIL: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-07/desastres-naturais-atingiram-93-dos-municipios-nos-ultimos-10-anos.
AMORIM, Sebastião Luiz; OLIVEIRA, Euclides Benedito de. Inventários e Partilhas: Direito das Sucessões. 22ª ed., São Paulo: Universitária do Direito, 2009.
CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-registrou-mais-de-mil-desastres-naturais-em-2023-segundo-o-cemaden/#:~:text=Foram%20registrados%201.161%20eventos%20de,registros%20de%202022%20e%202020.
BRASIL, Código Civil. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm.
GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro. Volume 7, 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2014.
NETFLIX, Disponível em: https://www.netflix.com/br/title/81268316
VENOSA, Silvio de Saldo, Direito Civil: Sucessões, 17ª ed., São Paulo: Atlas, 2017.
PELUSO. Cezar (coord.) Código Civil Comentado. 10ª ed., Barueri: Manole, 2016.
Advogado desde 2010, Contador desde 2019. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento. Pós Graduado em Direito Digital. Especialista em Direito Processual Civil e Direito Constitucional. Coautor de obras e artigos jurídicos. Titular do escritório Bruno Molina Sociedade Individual de Advocacia...
Ler maisDeixe seu comentário e vamos conversar!
Deixe um comentário