O direito das coisas é o regime jurídico que regula a relação entre pessoas e coisas. Diferencia-se do direito das obrigações, que rege a relação entre pessoas.
O Código Civil de 2002 procurou, ao longo de seus capítulos e seções, regular as múltiplas relações que um indivíduo celebra e mantém ao longo de sua vida.
Começamos com as disposições do nascimento, direitos da personalidade e capacidade; após, regulam-se as obrigações assumidas entre pessoas e as modalidades de contratos pelos quais elas se desenvolvem; mais adiante, cuida-se da atividade empresarial do ser humano e das formas de agremiações humanas com finalidade lucrativa; finalmente, encerra com o tratamento das famílias e o falecimento do ser humano, momento em que se abre a sucessão.
Como se vê, acompanha-se a vida privada do indivíduo e suas relações com os demais. Mas há uma exceção nessa cadeia de acontecimentos jurídicos. É o caso do Livro III do Código Civil, intitulado “Direito das Coisas”.
Entre os artigos 1.196 a 1.510-E, o legislador civilista deixou de disciplinar os vínculos entre humanos e passou a reger a relação entre as pessoas e os bens corpóreos e incorpóreos.
Essa dualidade entre a regulação das relações entre pessoas e a regulação das relações de pessoas e bens é fundamental para compreensão do chamado “Direito das Coisas.” Por isso, entendemos fundamental estabelecer uma comparação entre cada regime jurídico.
Continue a leitura deste artigo para entender mais sobre o Direito das coisas! 😉
Regime jurídico pessoa-pessoa:
Tecnicamente denominado regime jurídico de Direitos pessoais de cunho patrimonial, a lógica das normas pessoa-pessoa é, conforme explicado acima, a regra do Direito Civil brasileiro. Seu instituto típico é o contrato bilateral.
O princípio fundante dessa organização jurídica é a autonomia privada, ou seja, a ideia de que os sujeitos são formalmente iguais e, por isso, livres para criar obrigações vinculantes entre si. Salvo operações ilícitas ou impossíveis, os sujeitos podem entabular o bem entenderem.
Esse vínculo concerne exclusivamente às partes e está contido no âmbito de sua intimidade. As eventuais negociações e disposições contratuais podem ser, inclusive, objeto de cláusula de confidencialidade, em que se acorda que a divulgação das informações trocadas acarretará responsabilidade do divulgador.
Nesse contexto, é evidente que apenas as partes que participaram do acordo são obrigadas a cumpri-lo, em nada influenciando terceiros desinteressados. Daí decorre a característica de eficácia interpartes: a saber, os efeitos dos contratos atingem apenas os contratantes.
Caso haja qualquer violação dos acordos, a responsabilidade recairá apenas sobre o devedor, que responderá com seu patrimônio – ou, excepcionalmente, sobre seu garantidor/segurador.
Ainda que determinadas disposições possam ser cedidas com concordância do credor, ou transferidas no caso de falecimento do violador, o responsável será sempre sujeito determinado.
E em todos os casos, os acordos entre pessoas são passageiros. Foram feitos para ter começo, desenvolvimento e fim. Mesmo obrigações com prazo indeterminado – como nos casos de contratos de fornecimento – não foram feitas para a perpetuidade, mas significam apenas que, à época do acordo, não se tinha conhecimento de até quando seriam mantidas.
Eis aí as características marcantes do regime jurídico de direitos pessoais: autonomia privada, eficácia inter partes, responsabilidade sobre o devedor e transitoriedade. Algo distinto ocorre com os direitos reais.
Regime jurídico pessoa-coisa: o Direito das Coisas
No léxico jurídico, chamamos a lógica normativa pessoa-coisa de regime jurídico de direitos reais. O nome decorre do termo res, que em latim significa “coisa.”
Seu instituto típico é o direito de propriedade, que envolve a faculdade de usar, fruir, dispor e reaver de quem eventualmente venha a tomá-la injustamente. Nesse sentido, utilizam-se os conceitos “direitos reais” ou “direito das coisas” como sinônimos.
Em contrapartida à autonomia privada, a primeira característica dessa sistemática é a publicidade. Todos os direitos reais devem estar escriturados e registrados nos cartórios de notas e registros de imóveis de todo o Brasil, de modo público. Isso implica que qualquer pessoa pode se dirigir a uma serventia de imóveis e pedir pelos documentos relativos ao bem, sem necessidade de justificativa.
Se é assim, então os serviços de cartórios devem conhecer com profundidade cada uma das relações jurídicas existentes, razão pela qual sua estipulação não é livre, mas obedece a regras específicas. Diferentemente do regime de direitos pessoais, na lógica pessoa-coisa os indivíduos não podem criar relações atípicas e devem se curvar para as espécies existentes. A essas modalidades de relações jurídicas damos o nome de direitos reais.
Apenas a lei pode inovar nos direitos reais. No caso do Direito brasileiro, é o artigo 1.225 do Código Civil que determina quais são os direitos reais. Não vamos nos aprofundar em cada um deles neste momento, contudo, a título de conhecimento, são eles:
- A propriedade;
- A superfície;
- As servidões;
- O usufruto;
- O uso;
- A habitação;
- O direito do promitente comprador do imóvel;
- O penhor;
- A hipoteca;
- A anticrese;
- A concessão de uso especial para fins de moradia;
- A concessão de direito real de uso;
- A laje.
Outra característica marcante da lógica pessoa-coisa é sua eficácia erga omnes. Em oposição à eficácia inter partes, visto acima, os direitos reais possuem efeitos a todas as pessoas, ou seja, a partir do momento em que se registra a propriedade de um imóvel, apenas o proprietário poderá exercer o direito – ninguém mais.
No evento do registro, todos os sujeitos existentes são tacitamente vinculados a essa relação como “não proprietários” – ainda que não saibam disso. É uma relação marcada pela exclusão dos demais, porém ainda vinculante.
O terceiro elemento dos direitos reais opera sobre a esfera da responsabilidade. Havendo qualquer irregularidade no registro ou na operação imobiliária, a dívida irá recair sobre a própria coisa, independentemente das partes envolvidas na relação. Em outras palavras, a coisa responde.
Exemplo disso é o caso da dívida de IPTU – o imposto sobre propriedade territorial urbana: embora seja dever do proprietário recolher o tributo anualmente, caso não o faça, o débito ficará vinculado ao imóvel e quem vier a adquiri-lo no futuro se tornará o novo responsável pelo pagamento. Aliás, essa é uma situação muito comum no mercado imobiliário e o bom corretor deve estar atento a todo o passivo envolvido antes de iniciar as intermediações.
Finalmente, temos que os direitos reais são permanentes. Foram feitos para a posteridade e não podem ser desfeitos senão por decisão judicial que determine a nulidade da operação.
Nesse sentido, as transações envolvendo os direitos reais marcam o bem e ficam nele registradas. Isso pode ser percebido ao investigarmos uma matrícula imobiliária – o principal documento de um bem de raiz. Ali estará todo o histórico de transações, desde o proprietário inicial, eventuais usufrutos constituídos, servidores, desmembramento e assim por diante.
Resumidamente, as características dos bens imóveis são:
- Publicidade;
- Tipicidade disposta em lei;
- Eficácia erga omnes;
- Responsabilidade sobre a coisa;
- Perenidade.
Para fechar este capítulo, importa apresentar a tabela didática desenvolvida pelo jurista Flávio Tartuce. Veja:
Direitos pessoais | Direitos reais |
Relações jurídicas entre uma pessoa (sujeito ativo – credor) e outra (sujeito passivo – devedor). | Relações jurídicas entre uma pessoa (sujeito ativo) e uma coisa. O sujeito passivo não é determinado, mas é toda a coletividade |
Princípio da autonomia privada (liberdade). | Princípio da publicidade (tradição e registro) |
Efeitos inter partes. Há uma tendência de ampliação de efeitos. | Efeitos erga omnes. Os efeitos podem ser restringidos. |
Rol exemplificativo (numerus apertus). Art. 425 do CC – criação de contratos atípicos. | Rol taxativo (numerus clausus), segundo a visão clássica – art. 1.225 do CC |
Os bens do devedor respondem (princípio da responsabilidade patrimonial) | A coisa responde (direito de sequela) |
Caráter transitório. | Caráter permanente. |
Instituto típico: contrato. | Instituto típico: propriedade. |
Quais são os tipos de bens?
Uma vez compreendido o regime jurídico geral que regula a relação entre as pessoas e as coisas, podemos classificar esses bens a partir de determinadas características. Em regra, a doutrina divide os bens da seguinte maneira:
Bens Móveis e Imóveis:
Os bens móveis são aqueles que podem ser transportados por movimento próprio ou por força externa, como carros, móveis e eletrodomésticos. Já os bens imóveis são aqueles fixos, como terrenos, casas e apartamentos.
Bens Corpóreos e Incorpóreos:
Bens corpóreos são aqueles que têm existência física, como um livro, enquanto os incorpóreos são bens sem materialidade, como direitos autorais e patentes.
Bens Fungíveis e Infungíveis:
Bens fungíveis são aqueles que podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade, como dinheiro e grãos. Bens infungíveis, por outro lado, são únicos, como obras de arte.
Bens Divisíveis e Indivisíveis:
Bens divisíveis podem ser fracionados sem perder sua utilidade, como um terreno. Bens indivisíveis, como um animal de estimação, perdem sua utilidade se divididos.
Da classificação acima proposta, entendemos que aquela que apresenta maior pertinência na prática forense seja a divisão entre bens móveis e imóveis, sobretudo no que tange à forma de transferência de propriedade desses bens.
Como ensina Paulo Lôbo, no ordenamento jurídico brasileiro, o contrato de compra e venda (ou de doação, ou de permuta), por si só, não transfere o bem de uma pessoa a outra, mas apenas estipula as obrigações de cada parte e o modo pelo qual se dará a transferência. A realização da transmissão, por sua vez, é um ato isolado e varia de acordo com a natureza do bem, se móvel ou imóvel.
No caso dos bens móveis, a questão é mais simples: a transmissão ocorre na tradição – do latim traditio, que significa “entregar”. Isto é, quando o vendedor (ou doador etc.) entrega a coisa para o novo adquirente, simplesmente.
Nos atos cotidianos, é comum que os contratos de compra e venda de bens móveis sejam realizados de maneira informal e com a transmissão simultânea.
É o que acontece quando compramos um pão em uma padaria qualquer: o padeiro informa o preço, nós aceitamos, fazemos o pagamento e, de imediato, entrega-se o pão. Em questão de poucos segundos, foi firmado um contrato de compra e venda que já se realizou com a entrega do objeto.
Outras situações podem ser mais complexas, mas não alteram a regra da tradição. Vejamos a compra de um automóvel. Usualmente, o vendedor estipula uma série de obrigações para que o comprador receba o veículo, tais como, a informação aos órgãos de trânsito, a realização das averbações nos documentos do carro, entre outras.
Nesse contexto, é muito comum que se pense que o automóvel apenas troca de titular com o registro no departamento de trânsito. Isso não é verdade.
As averbações nas autoridades policiais possuem efeitos tão somente para o Poder Público, que irá alterar o contribuinte tributário, a cobrança de fiscalização e dará segurança para a transmissão. Contudo, juridicamente, a transmissão da propriedade se dá na entrega das chaves do veículo, do vendedor ao comprador.
Diferentemente da transmissão de bens móveis, que ocorre de modo privado e com a simples entrega, a transferência de bens imóveis possui uma formalidade acentuada e complexa. Bem por isso, comprador e vendedor devem estar acompanhados de um excelente profissional.
Nos termos do artigo 108 do Código Civil, os contratos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direito reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no país devem ser feitos por escritura pública. Isso significa que apenas a escritura realizada em cartório produz validade para iniciar uma operação imobiliária.
Considerando a complexa realidade brasileira, marcada pela desigualdade social e regional, tornou-se costume que muitos imóveis fossem negociados informalmente, contando apenas com documento particular assinado entre as partes. Esse instrumento levou o nome coloquial de “contrato de gaveta”, termo que indica com precisão a sua dinâmica: as partes assinam e o guardam na cômoda do dormitório, sem levá-lo a conhecimento público.
Referido “contrato de gaveta” não possui validade jurídica para dar causa à transferência da propriedade imobiliária. Porém, não se pode ignorar que a grande massa populacional não possui recursos para optar pela formalidade de pronto e a urgência da moradia não pode esperar que as partes regularizem sua situação.
Em vista disso, criou-se o instituto da “promessa de compra e venda”, uma modalidade de contrato privada, que não dá início ao processo de transferência, mas cria obrigações para cada uma das partes (vendedor e comprador) de agir a fim de viabilizar, no futuro, a transferência formalizada.
Nessa espécie de relação, é comum que o comprador negocie o pagamento parcelado do imóvel e se obrigue a pagar o preço no tempo estipulado. Por sua vez, o vendedor entrega a posse de imediato ao comprador e se obriga a formalizar a transmissão no cartório após o pagamento integral. A vantagem ao vendedor é que, caso o comprador descumpra os pagamentos, o imóvel continua ileso em sua propriedade registral.
Mas a escritura pública é apenas o início do processo de transmissão. Na realidade, a escritura é apenas o título com validade jurídica que dá causa à transmissão, ou seja, que justifica a forma pela qual o bem imóvel está circulando de uma pessoa a outra. Após a lavratura da escritura no tabelionato (também chamado de cartório de notas) é preciso que o comprador a encaminhe ao registrador (também chamado de cartório de registro de imóveis), para que a transmissão seja apontada na matrícula imobiliária.
Essa sistemática está descrita no artigo 1.245 e seguintes do Código Civil. Segundo a norma jurídica, os bens imóveis entre vivos são transferidos mediante título translativo (escritura) no Registro de Imóveis. Dessa forma, enquanto o título não for registrado, o alienante (vendedor/doador) permanece como dono do imóvel.
Daí a importância, usualmente ignorada, de se proceder com o registro da transferência tão logo seja firmada a escritura. Inúmeros conflitos envolvendo patrimônio imobiliário são experimentados porque as partes se dão por satisfeitas com a escritura da transação e, por displicência, deixam de formalizar a alteração.
Viva com liberadade
Quanto antes você contrata, menos você paga
Aproveitar desconto *Confira o regulamentoPosse:
Noção absolutamente pertinente ao direito das coisas é a posse. Nos termos do art. 1.196, tem a posse sobre um bem aquele que exercer algum dos poderes inerentes à propriedade. Isto é, o possuidor é aquele que usa, explora ou defende um bem.
A posse é, essencialmente, uma exteriorização da propriedade, mas não se confunde com esta. Segundo o entendimento clássico de Ihering, a posse é protegida juridicamente não apenas por ser um antecedente da propriedade, mas por sua função social, resguardando a relação da pessoa com o bem.
A tutela jurídica da posse, porém, varia a depender de sua classificação. Nesse sentido, diz-se que a posse justa é aquela adquirida sem violência, clandestinidade ou com abuso de confiança, respeitando os preceitos legais. A posse injusta é marcada pela presença de um destes vícios.
Ainda, a posse pode ser de boa-fé, ou de má-fé. A posse de boa-fé é aquela em que o possuidor acredita ser o legítimo detentor do bem, enquanto a de má-fé ocorre quando o possuidor tem ciência de que não detém o direito sobre o bem.
Apenas a posse justa induz a tutela jurídica e habilita o exercício das ações possessórias de manutenção e reintegração de posse, além de possibilitar a aquisição da propriedade por meio de usucapião.
Por sua vez, a posse de boa-fé habilita o possuidor a receber pelos frutos decorrentes da exploração da propriedade e a ser indenizado pelas benfeitorias úteis e necessárias realizadas no bem.
Conclusão:
Ao longo desta discussão, observamos que o Direito das Coisas é uma espécie de regime jurídico distinto do restante do Código Civil.
Enquanto o primeiro regime regula a relação entre pessoas e coisas, o regime de direito pessoal regula as relações das pessoas entre si.
Esta compreensão justifica porque o Direito das Coisas é marcado pelos elementos da publicidade, permanência, efeitos erga omnes e taxatividade de direitos.
Ademais, apresentam um panorama de como os indivíduos e a sociedade interagem com os bens, sejam eles móveis ou imóveis, corpóreos ou incorpóreos, com destaque à forma de transferência da propriedade.
Finalmente, identificamos o instituto da posse, conceito dinâmico e multifacetado, essencial para a compreensão das disputas relacionadas a propriedades e ao exercício de direitos sobre bens.
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Conheça as referências deste artigo
LÔBO. Paulo. Direito civil: contratos (vol. 3). São Paulo: Saraiva, 2018.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito das Coisas (vol. 4). São Paulo: Saraiva, 2016.
Advogado (OAB 97692/PR). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná - UFPR e Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pela PUC/PR. Sou membro do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e Desenvolvimento Humano (NUPED) e sócio fundador da Martinelli...
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