Família multiespécie é o termo utilizado para descrever uma família que possui um ou mais animais de estimação como um de seus integrantes.
O conceito de família tem passado por inúmeras modificações ao longo dos anos, refletindo as mudanças sociais, culturais e afetivas da sociedade.
Neste sentido, muitas pessoas passaram a residir sozinhas, casais estão optando por não terem filhos e em razão do divórcio, muitas famílias têm sido reconstituídas com diversas formações.
Dentre essas e outras mudanças, podemos destacar os animais de estimação, que deixaram de ser apenas “pets” e se tornaram parte essencial da estrutura familiar, inclusive muitas vezes como um elo de ligação entre seus diversos membros.
Não à toa, o Brasil é o terceiro país do mundo em números de animais domésticos, com população de mais de 160 milhões.
Contudo, embora os animais sejam hoje de suma importância para grande parte da população, o artigo 82 do Código Civil ainda os qualifica como bens móveis de movimento próprio, o que contradiz com o seu afeto familiar que ultrapassa a simples denominação de “coisa”.
Este artigo busca apresentar os desafios jurídicos envolvidos e quais as soluções a doutrina e jurisprudência têm dado para suprir essa omissão legislativa no que diz respeito às repercussões familiares.
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Relação entre seres humanos e animais:
Antes de trazer o conceito jurídico, é importante esclarecer que o relacionamento dos animais com os seres humanos se iniciou na pré-história, quando estes eram utilizados como ferramentas de proteção, trabalho e, posteriormente, domesticação.
Desde então, esta interação tem se intensificado ao longo dos séculos. No Egito Antigo os gatos eram considerados sagrados, com uma representação divina, enquanto na China Antiga os cães eram símbolos de proteção e boa sorte, criados dentro dos palácios imperiais.
Hoje em dia diversos estudos demonstram que além do reconhecimento de que os animais são dotados de sensações, a relação entre humanos e animais gera impactos positivos na saúde mental e emocional de ambos, fortalecendo a ideia de que essa interação ultrapassa a simples posse e se configura como um laço familiar legítimo.
Neste sentido, a psicologia reconhece o benefício para a saúde mental na convivência com animais de estimação, reduzindo estresse, ansiedade e depressão, além de promover sentimentos de felicidade e pertencimento.
A medicina, por sua vez, igualmente tem reconhecido o valor dos animais no tratamento de diversas condições de saúde, como a terapia assistida (TAA), utilizada em hospitais, asilos e centros de reabilitação de pacientes, idosos, crianças e pessoas com deficiência.
Toda essa interação reconhece o valor do relacionamento com os animais de estimação e passa a identificá-los como sujeitos de direitos, tendo sido retratados, inclusive, em filmes, desenhos animados, livros e propagandas.
O que é família multiespécie?
Trazendo essa interação para o seio familiar, família multiespécie é o nome dado pela doutrina e jurisprudência àquelas famílias que possuem, dentro de seus membros, um animal de estimação e que reconhecem os laços afetivos e emocionais entre eles.
Esse conceito vai além de uma simples posse ou guarda física do animal, mas reconhece o afeto envolvido, o que implica em repercussões jurídicas relacionadas a guarda, herança e responsabilidades de tutela.
De acordo com Rodrigo da Cunha Pereira, os animais devem ser considerados mais que “semoventes”, por isso têm sido denominados de seres sencientes, que são aqueles que possuem sensações como dor, angústia, sofrimento, solidão, etc.
Assim, ainda que a legislação não tenha se atualizado neste sentido, a doutrina já reconhece a família multiespécie como aquela que possui um vínculo constituído entre seres humanos e animais de estimação.
Quais são os tipos de família?
O Direito de Família como um todo também tem evoluído ao longo dos anos e reconhece, com base no direito à afetividade, diversas formas de organização familiar que vão além do modelo tradicional, pois a Constituição Federal por meio do artigo 226 legitimou diversas concepções familiares.
Dentre esses diversos modelos podemos destacar:
- Família nuclear tradicional: composta por pais e filhos;
- Família monoparental: composta por um dos genitores e seus filhos;
- Família anaparental: formada sem a presença de ascendentes ou descendentes, como irmãos que vivem juntos;
- Família reconstituída (ou recomposta): formada por casais que trazem filhos de relacionamentos anteriores;
- Família homoafetiva: constituída por pessoas do mesmo sexo e;
- Família multiespécie: quando humanos convivem com seus animais de estimação, estabelecendo um vínculo afetivo que se assemelha às demais configurações familiares.
Mais liberdade no dia a dia
Família multiespécie no Brasil e previsão legal
A família multiespécie no Brasil, embora tenha ganhado contornos doutrinários após a permissão constitucional da liberdade na organização e planejamento familiar, ganhou força a partir da percepção social sobre a valorização do bem-estar animal e a crescente conscientização sobre os seus direitos.
Esse movimento seguiu uma tendência mundial que se iniciou no século XVIII, em que filósofos como Jeremy Bentham começaram a debater sobre o interesse dos animais para se chegar ao termo senciência (animal dotado de sensações) no século XX com Peter Singer.
Ou seja, se de um lado a sociedade encontra-se em constante mudança sobre os diversos arranjos familiares, de outro, o direito dos animais passou a ganhar mais importância a cada dia, enaltecendo este vínculo afetivo.
No entanto, embora países como Portugal e Espanha já possuam legislações que reconheçam o direito dos animais no seio familiar, inclusive a sua proteção em caso de ruptura, no Brasil a legislação federal ainda se limita, dentro da proteção ambiental, a prever as penas para abusos e maus tratos de animais (Lei 9.605/98).
Embora diversos Projetos de Lei tenham sido apresentados (PL 7196/10, PL 1058/11 e PL 1365/15) para realizar esse reconhecimento, inclusive no seio familiar, todos foram arquivados.
Na esfera estadual, Estados como Santa Catarina e Rio Grande do Sul já reconhecem os cães e gatos como sujeitos de direitos, seres sencientes, enquanto que no Amazonas se estabeleceu que todos os animais devem receber tratamento digno e essencial à sadia qualidade de vida, tendo suas existências física e psíquica respeitadas.
Portanto, até o momento não há legislação federal que reconheça os animais como seres sencientes, de modo que a sua proteção no ambiente familiar ocorre por orientação doutrinária e evolução do entendimento jurisprudencial.
Jurisprudência sobre família multiespécie
A jurisprudência brasileira tem reconhecido em razão do vínculo de afeto que tutores possam visitar, pensionar ou dividir a guarda de um animal de estimação.
A primeira manifestação do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema ocorreu por meio do Recurso Especial nº. 1.713.167 julgado em 2018, em que a Quarta Turma reconheceu que embora o animal de estimação não possa modificar sua natureza jurídica estabelecida pelo Código Civil.
O regramento jurídico não tem se mostrado suficiente para resolver as disputas familiares envolvendo os pets, concedendo, naquele caso, o direito de visitas ao animal pela outra parte em razão do vínculo de afeto, conforme trecho abaixo:
(…) A ordem jurídica não pode, simplesmente, desprezar o relevo da relação do homem com seu animal de estimação, sobretudo nos tempos atuais. Deve-se ter como norte o fato, cultural e da pós-modernidade, de que há uma disputa dentro da entidade familiar em que prepondera o afeto de ambos os cônjuges pelo animal. Portanto, a solução deve perpassar pela preservação e garantia dos direitos à pessoa humana, mais precisamente, o âmago de sua dignidade.
Os animais de companhia são seres que, inevitavelmente, possuem natureza especial e, como ser senciente – dotados de sensibilidade, sentindo as mesmas dores e necessidades biopsicológicas dos animais racionais -, também devem ter o seu bem-estar considerado.
Assim, na dissolução da entidade familiar em que haja algum conflito em relação ao animal de estimação, independentemente da qualificação jurídica a ser adotada, a resolução deverá buscar atender, sempre a depender do caso em concreto, aos fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, com a proteção do ser humano e do seu vínculo afetivo com o animal (…).
Esse julgamento acabou por consolidar o posicionamento dos demais Tribunais sobre a possibilidade de definir guarda, visitas e pensão aos animais de estimação.
Em outro julgamento proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, foi autorizado o direito do tutor às visitas mensais de seu pet durante o período de dez dias, conforme abaixo:
EMENTA: Guarda e Visitas de animal doméstico – regulamentação – liminar deferida em parte para autorizar a visitação do autor com retirada do animal dia 20, às 18h, e devolução dia 30, às 18h, de cada mês – irresignação da ex-companheira – omissão legislativa sobre a relação afetiva entre pessoas e animais de estimação – aplicação analógica do instituto da guarda de menores –inteligência dos arts. 4º e 5º da LINDB – inexistência de indícios de que o autor seja negligente em relação aos cuidados de que o animal necessita – vínculo afetivo demonstrado, a princípio, com as fotografias – direito de convívio – decisão mantida – recurso desprovido.
(TJSP. AI nº. 2006125-47.2023.8.26.0000. Rel. Theodureto Camargo; 8ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 28/02/2023, D.O 02/03/23).
O Tribunal utilizou naquele caso a aplicação da analogia do instituto da guarda de menores.
Ao tratar da pensão destinada ao animal de estimação, o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº. 1.944.228 concluiu não ser cabível, se a guarda permanecer de forma exclusiva com uma das partes, pois cessaria o estado de mancomunhão, senão vejamos:
(…) 3. As despesas com o custeio da subsistência dos animais são obrigações inerentes à condição de dono, como se dá, naturalmente com os bens em geral e, com maior relevância, em relação aos animais de estimação, já que a sua subsistência depende do cuidado de seus donos, de forma muito particularizada. Enquanto vigente a união estável, é indiscutível que estas despesas podem e devem ser partilhadas entre os companheiros (ut art. 1.315 do Código Civil). Após a dissolução da união estável, esta obrigação pode ou não subsistir, a depender do que as partes voluntariamente estipularem, não se exigindo, para tanto, nenhuma formalidade, ainda que idealmente possa vir a constar do formal de partilha dos bens hauridos durante a união estável. Se, em razão do fim da união, as partes, ainda que verbalmente ou até implicitamente, convencionarem, de comum acordo, que o animal de estimação ficará com um deles, este passará a ser seu único dono, que terá o bônus — e a alegria, digo eu — de desfrutar de sua companhia, arcando, por outro lado, sozinho, com as correlatas despesas. (…) 3.2 O fato de o animal de estimação ter sido adquirido na constância da união estável não pode representar a consolidação de um vínculo obrigacional indissolúvel entre os companheiros (com infindáveis litígios) ou entre um deles e o pet, sendo conferida às partes promoverem a acomodação da titularidade dos animais de estimação, da forma como melhor lhes for conveniente. (…)
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Nesta decisão, a corte reconheceu o vínculo afetivo sobre os animais, mas ponderou que estes também não podem representar a consolidação de um vínculo obrigacional indissolúvel.
Significa dizer que embora possa se utilizar os princípios gerais do direito e analogia das regras atinentes à guarda de filhos menores, toda a interpretação deve ser temperada caso a caso.
Portanto, embora a jurisprudência tenha avanços importantes neste reconhecimento e solução, ainda há divergências de interpretação em cada estado, inclusive sobre a competência (se seria da vara cível ou vara de família), o que demonstra que ainda há um caminho a ser percorrido para consolidação deste tema.
Filmes sobre família multiespécie
Para quem gostou deste tema, separamos quatro filmes que retratam bem o relacionamento afetivo dos animais com os seres humanos e a importância de se reconhecer juridicamente esta relação familiar, cuja ruptura apresenta danos a ambas as partes:
Quatro vidas de um cachorro (2017)
Este filme retrata um animal que morre e reencarna diversas vezes, destacando o laço afetivo entre humanos e animais. Embora o cachorro tenha tido diversos donos (ao longo de suas vidas), ele sempre mantém a esperança de encontrar o seu primeiro dono.
Sempre ao seu lado (2009)
Baseado em uma história real, o filme mostra uma conexão profunda entre um professor (Richard Gere) e seu cachorro, recém adotado na estação de trem, cujo amor incondicional o faz continuar esperando por seu dono, mesmo após a morte do tutor.
Pig – A vingança (2021)
Estrelado por Nicolas Cage, o filme mostra a relação de um homem solitário com sua porca de estimação e sua jornada de vingança após essa porca ter sido sequestrada, a única companhia que ele tinha, revelando a profundidade do vínculo entre os dois.
Um cachorro para Dois (2016)
Este filme com Alicia Silverstone aborda diretamente uma disputa de guarda judicial de um pet. Na trama, um casal possui um Golden Retriever que adotaram juntos e ao se divorciarem passam a brigar judicialmente pelo animal, o que demonstra a força do vínculo afetivo.
Conclusão
A família multiespécie já é uma realidade brasileira que precisa ser reconhecida pelo ordenamento jurídico, pois representa uma nova forma de organização familiar que trata os animais de estimação como membros efetivos.
Esse conceito reflete a evolução da sociedade e do Direito, que passam a enxergar os animais como seres sencientes e dotados de direitos, de modo que o reconhecimento desse vínculo entre humanos e animais pode garantir mais segurança jurídica para tutores e contribuir para o bem-estar dos pets.
Assim, embora a legislação ainda seja omissa, a doutrina e jurisprudência têm garantido que os direitos dos tutores e seu vínculo afetivo com os respectivos animais sejam respeitados.
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Advogado desde 2010, Contador desde 2019. Mestre em Direito, Justiça e Desenvolvimento. Pós Graduado em Direito Digital. Especialista em Direito Processual Civil e Direito Constitucional. Coautor de obras e artigos jurídicos. Titular do escritório Bruno Molina Sociedade Individual de Advocacia...
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