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Entenda o que é a herança digital e qual a sua regulamentação

Entenda o que é a herança digital e qual a sua regulamentação

10 jul 2023
Artigo atualizado 3 ago 2023
10 jul 2023
ìcone Relógio Artigo atualizado 3 ago 2023
Herança digital é o conjunto de ativos digitais, como contas de e-mail, perfis em redes sociais, arquivos na nuvem, sites, fotos digitais e outros conteúdos criados e armazenados em formato digital, que são deixados por uma pessoa após sua morte.

Não há dúvidas que a morte é um nivelador universal. Será possível desafiá-la por uma aparente continuidade da vida através dos meios digitais? A morte biológica acontece, mas os infinitos dados e informações compartilhadas na rede, a princípio, não são apagados. 

A sucessão post mortem,  em especial quando o patrimônio a ser transmitido é digital, fez nascer nos últimos anos o termo “herança digital”. 

A sucessão digital é assunto cada vez mais relevante, seja pelo evidente avanço da tecnologia, que possibilitou que muitas pessoas passassem a possuir uma quantidade significativa de bens digitais, seja pela nova preocupação com a privacidade e proteção dos dados que são gerados.

Dessas preocupações surgem algumas perguntas: o que acontece com esses ativos após a morte do titular? São transmitidos aos herdeiros? Não existiria uma violação à privacidade?

Neste artigo, vamos explorar o conceito de herança digital bem como o que seriam os bens digitais, a diferença entre patrimônio e herança digital, a regulamentação (in)existente no Brasil e como os  demais países têm lidado com o tema. Vamos lá!

O que é herança digital?

A herança digital refere-se ao conjunto de bens e informações digitais, intangíveis, imateriais e incorpóreos por natureza, deixados por uma pessoa após o seu falecimento

Isso inclui contas de e-mail, perfis em redes sociais, arquivos armazenados em nuvem, sites, blogs, fotografias digitais, moedas digitais e qualquer outra forma de conteúdo gerado e armazenado em meios digitais.

Entenda o que é herança digital
Veja o que é herança digital

O que são bens digitais?

De acordo com a doutrina de Bruno Zampier,  bens digitais podem ser definidos como:

bens incorpóreos, os quais são progressivamente inseridos na Internet por um usuário, consistindo em informações de caráter pessoal que lhe tragam alguma utilidade, tenham ou não conteúdo econômico”. 

O autor diferencia os bens digitais em patrimoniais e existenciais, havendo ainda aqueles que conteriam ambos os aspectos – os chamados bens digitais patrimoniais-existenciais. 

Nessa linha de raciocínio, os bens digitais poderiam se dividir em:

Conteúdo digital

São informações, documentos, arquivos, obras intelectuais, como textos, imagens, vídeos, músicas, softwares, jogos eletrônicos, entre outros, que são armazenados e acessados por meio de dispositivos eletrônicos.

Direitos digitais

São os direitos relacionados aos conteúdos digitais, como os direitos autorais, direitos conexos, direitos de propriedade intelectual, direitos de personalidade e outros direitos específicos que se aplicam ao ambiente digital.

Ativos digitais

São os elementos de valor no ambiente digital, como domínios de internet, marcas virtuais, patentes de software, bases de dados eletrônicas, criptomoedas, tokens e outros ativos financeiros digitais.

Identidades digitais

Referem-se às informações e dados pessoais que identificam e representam uma pessoa no ambiente virtual, como senhas, logins, perfis de redes sociais, endereços de e-mail, entre outros.

A partir dessas definições já podemos perceber que a proteção e a regulação dos bens digitais envolvem desafios específicos devido à natureza virtual desses elementos. 

Questões como a segurança da informação, privacidade, direitos autorais, responsabilidade civil, crimes cibernéticos, privacidade e proteção de dados são áreas importantes do direito que se relacionam diretamente com os bens digitais.

Leia também: Guia comentado da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (13709/18)

Qual a diferença entre patrimônio e herança digital?

O patrimônio é composto por todos os bens e direitos de uma pessoa, enquanto a herança digital refere-se especificamente aos bens e informações digitais deixados após o falecimento. 

Embora a herança digital faça parte do patrimônio, ela possui características próprias devido à sua natureza digital.

Quais são os tipos de herança digital?

Não existem tipos de herança digital, existe uma classificação de bens digitais que podem se dividir em:

  • Bens digitais com valor econômico;
  • Bens digitais com valor sentimental.

Bens digitais com valor econômico

Incluem aqui os ativos digitais que possuem valor monetário, como criptomoedas, domínios de internet valiosos, programas de computador desenvolvidos pelo falecido, entre outros.

Bens digitais com valor sentimental: 

Conteúdos digitais que possuem valor emocional para os familiares, como fotos, vídeos, mensagens, e-mails e postagens em redes sociais.

Leia também: Como funciona a Cessão de Direitos Hereditários?

Existe regulamentação no Brasil para a herança digital?

Não é de hoje que vemos os fenômenos acontecerem de forma acelerada e a legislação, a nosso sentir,  não acompanhar os desenvolvimentos das relações humanas, mais enfaticamente naquelas que permeiam o desenvolvimento tecnológico.

Com relação ao tema “herança digital” não é diferente, embora já existam casos judicializados, no Brasil não existe regulamentação específica sobre o tema. 

Essa realidade não é exclusiva do Brasil, afinal, os avanços tecnológicos andam a passos largos e os processos legislativos, a nível global, foram moldados com uma série de burocracias que demandam tempo, tempo esse que está em completo descompasso com a era da informação que vivemos.

Existem soluções interessantes para resolver esse problema, valendo citar as iniciativas de “sandbox regulatório”, contudo, este assunto fica para uma próxima conversa.

E a pergunta que resta ser respondida é: se não existe regulamentação sobre a sucessão de bens digitais, o que deve ser feito? Aliás, é possível existir a herança digital?

O leading case alemão

A doutrina, em especial a pesquisa para dissertação de mestrado que se transformou em livro da brilhante Fernanda Mathias de Souza Garcia e o pioneiro artigo “Case Report: Corte Alemã Reconhece a Transmissibilidade da Herança Digital” das professoras Laura Schertel Ferreira Mendes e Karina Nunes Fritz, trazem à colação o emblemático leading case alemão que serviu como norte para a comunidade internacional sobre a transmissibilidade da herança digital, que também trazemos a seguir.

Os pais de uma adolescente de 15 anos, vítima de um acidente fatal ocorrido no metrô de Berlim, em 2012, ingressaram com ação contra o Facebook por terem sido impedidos de acessar a conta da adolescente na plataforma. 

A conta da adolescente havia se transformado em “memorial” e as circunstâncias de sua morte não estavam esclarecidas. Os pais da adolescente suspeitavam de suicidio e o acesso à conta era no intuito de averiguar se existiam indícios de mobbing – perseguição psicológica ou moral empreendida contra um indivíduoocorrido no colégio.

O Facebook esclareceu que a transformação da conta em memorial, com a consequente vedação de acesso a qualquer pessoa, tinha como intuito proteger não apenas os direitos do usuário falecido, mas também os direitos de seus contatos. 

Segundo o argumento da plataforma, os interlocutores (amigos do falecido) entendem que as mensagens trocadas sejam mantidas em sigilo e, permitir que herdeiros tenham acesso, violaria o direito à privacidade.

O juiz de primeiro grau (LG Berlin), em 17/12/2015, concedeu os pedidos feitos pelos pais da adolescente e determinou que o Facebook liberasse o acesso à conta da falecida, sob o argumento de que a herança digital do falecido pertence a seus herdeiros, podendo eles acessar todas contas de e-mails, celulares, WhatsApp e redes sociais.

A decisão foi reformada em recurso, negando acesso a conta sob o argumento de violação ao sigilo das comunicações dos interlocutores. Foi reconhecido que, a princípio, ocorreria a transmissibilidade das pretensões e obrigações do contrato celebrado pela falecida aos seus herdeiros, contudo, não havia clareza jurídica sobre a transmissibilidade de bens digitais com conteúdo personalíssimo.

Em novo recurso, a decisão foi mais uma vez reformada, dessa vez para garantir aos herdeiros o direito sucessório dos pais e a consequente autorização para acesso à conta da filha falecida. 

A argumentação foi no sentido de que como se tratava de um contrato de utilização celebrado entre a falecida e o Facebook, esse seria transmissível aos herdeiros com a morte

Nesta decisão ainda restou entendido que o direito sucessório à herança digital não ofenderia os direitos de personalidade post mortem, ao direito de personalidade da falecida ou dos terceiros interlocutores, ao sigilo das comunicações e nem às regras de proteção de dados pessoais.

Como vimos, o Tribunal alemão aplicou o princípio da sucessão universal, ou seja, todo o patrimônio do de cujus, seja ele analógico ou digital, deve ser transmitido aos herdeiros. 

Vale ainda considerar que o Tribunal alemão enfatizou que, não existiu por parte do de cujus, qualquer manifestação contrária à transmissão de seus bens digitais, sendo que para evitar a transmissão da conta de rede social, este deveria manifestar – em vida – tal vontade de forma válida.

Posicionamento judicial sobre herança digital no Brasil

No Brasil não existe legislação específica sobre o tema e poucos casos foram apresentados ao Poder Judiciário. Os processos judiciais que tivemos acesso giram em torno da privacidade e proteção de dados e do direito sucessório, sendo que as soluções se deram através da interpretação de princípios já constantes no sistema. 

Processo nº 0001007-27.2013.8.12.0110

Assim aconteceu no processo nº 0001007-27.2013.8.12.0110 que tramitou perante o 1º Juizado Especial Central de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul: 

Após o falecimento de sua filha (a jornalista Juliana Ribeiro Campos), Dolores buscou através dos meios administrativos desativar o perfil do Facebook de Juliana, sem êxito. Dolores se sentia incomodada com as mensagens recebidas na página de Juliana. A questão foi judicializada e o pedido liminar  foi deferido determinando a exclusão da página sob pena de multa de R$ 500,00 e imputação do crime de desobediência à ordem judicial.

Processo 1119688-66.2019.8.26.0100

Já no processo 1119688-66.2019.8.26.0100, a justificativa do pedido foi totalmente oposta. Elza ingressou com ação de obrigação de fazer para manter a conta do facebook de sua filha falecida (Mariana) ativa, sob o argumento de que o acesso ao perfil era uma forma de amenizar a dor da perda. 

A ação foi julgada improcedente, sendo que a sentença foi mantida em acórdão proferido pela 31ª Câmara de Direito Privado sob a fundamentação de que a plataforma ao excluir a conta, teria agido em exercício regular do direito, por seguir os termos de uso aceitos no ato da contratação do serviço.

A referida ação ainda não transitou em julgado, tendo sido interposto recurso especial distribuído ao ministro Paulo de Tarso Sanseverino, estando concluso para julgamento desde 01.06.2023.

Processo 1020052-31.2021.8.26.0562

Por sua vez, no processo 1020052-31.2021.8.26.0562, que tramitou perante a 2ª Vara do Juizado Especial Cível de Santos, foi assegurado o acesso aos dados salvos na conta Apple ID do jovem J.V.D.N. pelos herdeiros necessários, especialmente pelo caráter sentimental, que foi o fundamento do pedido.

A questão principal sobre a transmissibilidade de ativos digitais, discutida no Brasil e ao redor do mundo, é relativa a transmissibilidade total aos herdeiros ou a transmissibilidade parcial, dividindo o acervo digital em patrimonial-transmissível e privado-moral-intransmissível.

Imaginemos que no acervo digital do falecido contenham bens de diversas características e funções, dentre eles: fotos íntimas, diários particulares e até mesmo mensagens trocadas com terceiros. 

Não há dúvidas que estamos diante de um patrimônio disponível, sendo plenamente possível dispor em testamento, contudo, caso não exista testamento, será que estamos diante de um patrimônio transmissível por herança? Não existiria uma violação à intimidade, vida privada, bem como do sigilo das comunicações?

As perguntas não têm uma resposta definitiva, alguns doutrinadores e julgadores entendem que por se tratar de um direito da personalidade, não é transmissível. 

Por sua vez, outros doutrinadores e julgadores entendem que o direito sucessório autoriza, em regra, a transmissibilidade dos conteúdos digitais, sendo que tal transmissibilidade não ofenderia o direito da personalidade post mortem e que seria irrelevante distinguir as situações jurídicas patrimoniais e existenciais.

Nesse meio-tempo, compete ao profissional do direito acompanhar a evolução das discussões e dos julgamentos para melhor orientar os seus clientes.

Conclusão:

A herança digital é uma realidade e o debate sobre o tema se tornará cada vez mais relevante.

A ausência de legislação específica cria desafios para os advogados que atuam nessa área, mas também abre espaço para que os pensadores livres busquem soluções que respondam adequadamente aos novos desafios impostos pelo mundo digital.

É fundamental que os profissionais estejam atualizados e preparados para orientar seus clientes sobre questões relacionadas à herança digital, garantindo a proteção dos bens digitais e o respeito aos desejos dos falecidos.

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Conheça as referências deste artigo

 ZAMPIER, Bruno. Bens Digitais. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2017, p. 74 e 111-112.

 GARCIA, Fernanda Mathias, Herança Digital: o direito brasileiro e a experiência estrangeira. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2022, Local 817 e 847 de 3129.

 TEIXEIRA, A.C.B.; LEAL, L.T., Herança Digital: controvérsias e alternativas – TOMO 2. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2022, p.219.

 ZAMPIER, Bruno. Bens Digitais. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2021, p. 63-64.

 GARCIA, Fernanda Mathias, Herança Digital: o direito brasileiro e a experiência estrangeira. Rio de Janeiro, RJ: Lumen Juris, 2022, Local 817 e 847 de 3129.


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