A inversão do ônus da prova no CDC é caracterizada como uma facilitação da proteção dos direitos do consumidor.
Uma das inovações mais importantes trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor, foi a possibilidade de ser declarada a inversão do ônus da prova no processo judicial. Prevista no art. 6º, inciso VIII, ela consta no rol dos chamados “direitos básicos do consumidor”.
Sendo assim, neste artigo iremos abordar os principais aspectos da inversão do ônus da prova no CDC. Fique ligado! 😉
O que é inversão do ônus da prova no CDC?
A inversão do ônus da prova no CDC é caracterizada como uma facilitação da proteção dos direitos do consumidor. Assim, incumbe ao autor provar o fato constitutivo de seu direito e ao réu provar a existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
Portanto, a regra geral sobre distribuição do ônus da prova em processos judiciais é aquela inserida no artigo 373, incisos I e II, do Código de Processo Civil de 2015. É sempre bom lembrar que essa regra já vinha no antigo Código de Processo Civil, em seu artigo 333.
No entanto, a aplicação dessa distribuição do ônus da prova parte do pressuposto de igualdade entre as partes litigantes. Isto é, não se observa em uma relação de consumo onde a vulnerabilidade do consumidor é presumida.
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Vulnerabilidade do consumidor
Sobre a vulnerabilidade do consumidor como um princípio do CDC, Flávio Tartuce nos ensina que:
de acordo com a realidade da sociedade de consumo, não há como afastar tal posição desfavorável, principalmente se forem levadas em conta as revoluções pelas quais passaram as relações jurídicas e comerciais nas últimas décadas”
E ainda completa:
Com a mitigação do modelo liberal da autonomia da vontade e a massificação dos contratos, percebe-se uma discrepância na discussão e aplicação das regras comerciais, o que justifica a presunção de vulnerabilidade, reconhecida como uma condição jurídica, pelo tratamento legal de proteção. Tal presunção é absoluta ou iure et de iure, não aceitando declinação ou prova em contrário, em hipótese alguma.”
Sendo assim, o legislador previu a possibilidade de se inverter o ônus da prova. Ou seja, ele desviou da regra geral prevista no Código de Processo Civil visando facilitar a defesa dos direitos do consumidor.
Esse regimento tem sido de grande importância em processos judiciais envolvendo relações de consumo. Pois, muitas das vezes o consumidor não tem condições de provar o fato constitutivo de seu direito.
Isso pode acontecer por questões de hipossuficiência:
- técnica: como nos casos envolvendo, por exemplo, revisionais de contratos bancários;
- econômica: como nos casos em que se revela muito custoso ao consumidor produzir a prova;
- informacional: quando o consumidor não tem acesso a todas as informações capazes de fundar o seu direito.
No entanto, isso não significa que a inversão do ônus da prova se aplica a qualquer processo consumerista. Em cada caso deve ser analisado se estão presentes os requisitos legis.
Qual a diferença entre hipossuficiência e vulnerabilidade?
De acordo com o CDC, todos os consumidores se encontram em posição de vulnerabilidade. Por outro lado, a hipossuficiência deve ser demonstrada no caso concreto.
Sobre o tema, vejamos a lição de Felipe Peixoto Braga Netto:
É possível, por exemplo, que em demanda relativa a cobranças indevidas realizadas por operadora de telefonia celular, o juiz determine a inversão do ônus da prova tendo em vista a hipossuficiência do cliente. Não é razoável exigir do consumidor a prova de que não fez determinadas ligações. É razoável, por outro lado, exigir da operadora semelhante prova. É preciso, para deferir a inversão, analisar a natureza do serviço prestado, o grau de instrução do consumidor, etc). A hipossuficiência diz respeito, nessa perspectiva, ao direito processual, ao passo que a vulnerabilidade diz respeito ao direito material. Já a presunção de vulnerabilidade do consumidor é absoluta. Todo consumidor é vulnerável, por conceito legal. A vulnerabilidade não depende da condição econômica, ou de quaisquer contextos outros.”
Assim sendo, não há de se discutir a vulnerabilidade, mas sim a hipossuficiência para a decretação da inversão do ônus da prova. Porém, ainda há um outro requisito que autoriza a inversão do ônus da prova no CDC.
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Quais os requisitos para inversão do ônus da prova no CDC?
O próprio artigo 6º, inciso VIII, expõe os requisitos para aplicação da inversão do ônus da prova no CDC: Quando a alegação do consumidor for verossímil e quando o consumidor for hipossuficiente.
Desde logo, convém deixar claro que esses requisitos não são cumulativos. Isto é, não é necessária a presença de ambos. Se o juiz verificar a presença de apenas um dos requisitos, será declarada a inversão do ônus da prova.
À respeito da verossimilhança das alegações, Antônio Carlos Efing explica:
A verossimilhança da alegação do consumidor não pode ser confundida com a verossimilhança imposta para o caso de antecipação de tutela de que trata o art. 273 do Código de Processo Civil [de 1973, incluído pela Lei 9.494/97]. Neste caso antecipar total ou parcialmente os efeitos do provimento judicial pretendido pela parte impõe ao magistrado o seu convencimento a respeito dos elementos contidos nos autos. Já a verossimilhança de que trata a norma do art. 6º, inc. VIII do CDC (muito anterior ao instituto da antecipação de tutela do CPC) não impõe ao magistrado convencimento ou convicção, bastando que se revista o fato narrado pelo consumidor de aparência de verdade.”
Como já dito, a hipossuficiência possui diversas particularidades. Sendo às vezes caracterizada como hipossuficiência técnica e, em outras, como hipossuficiência informacional ou econômica.
Portanto, a dica é sempre analisar se no caso concreto o consumidor está em uma posição menos favorecida do que o fornecedor em relação à prova que pretende produzir. Se essa condição se verificar, restará caracterizada a hipossuficiência, motivando a inversão do ônus.
Por fim, importa salientar que há casos em que a inversão do ônus da prova se dá por força da lei. Como por exemplo, nos casos previstos nos artigos 12, § 3º, II, 14, § 3º, I, e 38 do CDC.
Jurisprudência de inversão do ônus da prova no CDC
Pela relevância do tema, a jurisprudência brasileira é abundante sobre a inversão do ônus da prova no CDC. Para esse texto, separei precedentes em que houve a inversão do ônus da prova em razão de hipossuficiência:
- técnica;
- econômica;
- informacional.
Hipossuficiência Técnica
Direito Processual Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos morais e materiais. Ocorrência de saques indevidos de numerário depositado em conta poupança. Inversão do ônus da prova. Art. 6º, VIII, do CDC. Possibilidade. Hipossuficiência técnica reconhecida. O art. 6º, VIII, do CDC, com vistas a garantir o pleno exercício do direito de defesa do consumidor, estabelece que a inversão do ônus da prova será deferida quando a alegação por ele apresentada seja verossímil, ou quando constatada a sua hipossuficiência. Na hipótese, reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, em ação que versa sobre a realização de saques não autorizados em contas bancárias, mostra-se imperiosa a inversão do ônus probatório. Diante da necessidade de permitir ao recorrido a produção de eventuais provas capazes de ilidir a pretensão indenizatória do consumidor, deverão ser remetidos os autos à instância inicial, a fim de que oportunamente seja prolatada uma nova sentença. Recurso especial provido para determinar a inversão do ônus da prova na espécie”
(STJ – REsp 915.599/SP – Terceira Turma – Rel. Min. Nancy Andrighi – j. 21.08.2008 – DJe 05.09.2008)
Hipossuficiência Econômica
AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE RESPONSABILIDADE OBRIGACIONAL SECURITÁRIA. SISTEMA FINANCEIRO HABITACIONAL (SFH). RECURSO INTERPOSTO PELA RÉ CONTRA A DECISÃO SANEADORA. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, COM A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA E TÉCNICA DA DEMANDANTE DEMONSTRADA. POSSIBILIDADE. DECISÃO MANTIDA.AGRAVO DE INSTRUMENTO CONHECIDO E DESPROVIDO.”
(TJPR – 10ª C.Cível – 0067344-79.2020.8.16.0000 – Pato Branco – Rel.: Desembargador Guilherme Freire de Barros Teixeira – J. 08.03.2021)
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Neste último caso, também será verificado que além da hipossuficiência informacional, a inversão foi declarada tendo em vista a verossimilhança das alegações do consumidor.
EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. EMPREENDIMENTO IMOBILIÁRIO. AQUISIÇÃO DE IMÓVEL NA PLANTA. DECISÃO SANEADORA QUE RECONHECE A INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NECESSIDADE, TAMBÉM, DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. VEROSSIMILHANÇA DAS ALEGAÇÕES NO SENTIDO DE QUE A PROPOSTA OFERTADA INCLUÍA O RECEBIMENTO DE VEÍCULO COMO PARTE DO PAGAMENTO DO PREÇO FINAL. ADEMAIS, HIPOSSUFICIÊNCIA INFORMACIONAL. MAIOR FACILIDADE DE OBTENÇÃO DA PROVA PELA EMPREENDEDORA, QUE TEM A POSSE DE DOCUMENTOS NECESSÁRIOS À ELUCIDAÇÃO DOS FATOS NARRADOS, BEM COMO PODE INDICAR COM PRECISÃO AS TESTEMUNHAS QUE DEVEM SER INQUIRIDAS. PRESENTES OS REQUISITOS DO ART. 6º, INC. VIII, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.RECURSO PROVIDO.”
(TJPR – 16ª C.Cível – 0044040-51.2020.8.16.0000 – Curitiba – Rel.: Desembargador Lauro Laertes de Oliveira – J. 04.11.2020)
No mais, é indispensável ressaltar que não se deve analisar se o consumidor é simultaneamente hipossuficiente em todas as hipóteses apresentadas. Como já falamos na dica dada, se deve analisar o caso concreto a fim de avaliar a possibilidade da inversão do ônus da prova.
Como exemplo, Felipe Peixoto Braga Netto traz:
É importante esclarecer que a hipossuficiência a que faz menção o CDC nem sempre é econômica. Embora pouco freqüente, não é impossível que o consumidor seja economicamente mais forte que o fornecedor, e ainda assim ser hipossuficiente. A hipossuficiência pode ser técnica, por exemplo (paciente submetido a cirurgia em clínica médica, ocasião em que ocorre um erro médico que o deixa cego). O consumidor, nesse caso, será hipossuficiente, não tendo o conhecimento técnico da especialidade médica, e a inversão do ônus da prova, por isso mesmo, poderá ter lugar.”
Aspectos importantes para advogados
Seja em favor do consumidor ou em favor do fornecedor, o advogado que for ajuizar uma ação de consumo deve ficar atento a alguns aspectos importantes.
Requerimento do ônus da prova
Embora não seja essencial que o consumidor faça o pedido de inversão do ônus da prova, é sempre bom deixar registrado o requerimento já na petição inicial. A fim de que o réu possa exercer o contraditório e o juiz possa analisar a questão carregado dos argumentos já vertidos nos autos.
Análise do pedido
Além disso, é fundamental que os advogados fiquem atentos ao momento do processo em que a inversão é analisada. No passado, alguns julgadores deixavam para analisar o pedido de inversão somente na sentença. Pois, entendiam se tratar de regra de julgamento.
Essa prática já não é mais aceita, pois o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento de que a inversão do ônus da prova é regra de instrução. Ou seja, deve ser analisada na fase instrutória do processo.
Com a entrada em vigor do CPC/15, essa discussão foi definitivamente superada. Já que a previsão do artigo 357, inciso III, determina que a análise acerca da inversão do ônus da prova se dará com a decisão de saneamento do processo.
Caso o juiz não verifique a distribuição do ônus da prova na decisão de saneamento, o advogado deve se manifestar pedindo esclarecimentos. E, persistindo a omissão, deverá ser interposto o recurso de Agravo de Instrumento.
Inversão do ônus de custeio da prova
Outro ponto importante a ressaltar é que a inversão do ônus da prova não opera necessariamente a inversão do ônus de custeio da prova. Portanto, é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça:
Processual civil. Consumidor. Inversão do ônus da prova. Honorários do perito. Responsabilidade. Hipossuficiência. 1. A simples inversão do ônus da prova, no sistema do Código de Defesa do Consumidor, não gera a obrigação de custear as despesas com a perícia, embora sofra a parte ré as consequências decorrentes de sua não produção. (REsp 639.534/MT – Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito – DJU 13.02.2006). Precedentes. 2. Recurso especial provido”
(STJ – REsp 1063639/MS – Segunda Turma – Rel. Min. Castro Meira – j. 01.10.2009 – DJe 04.11.2009)
Esse entendimento é contestado por parte da doutrina com razão. Pois, nos dizeres de Flávio Tartuce:
Não parece ser lógico que o consumidor adiante uma despesa que só interessa ao fornecedor, por ser sua única forma de evitar uma derrota na decisão judicial”.
Por fim, cabe frisar que é nula a cláusula que estabeleça a inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor nos termos artigo 51, inciso VI, do CDC.
Conclusão
O Código de Defesa do Consumidor completou 30 anos no ano de 2020. Nesse período, trouxe relevantes impactos na relação de consumo que refletiram nos incontáveis processos judiciais ajuizados Brasil afora.
De todos os impactos trazidos pelo CDC, considero que o instituto da inversão do ônus da prova seja um de maior relevância e utilidade. Tanto é, que foi incorporado pelo Código de Processo Civil de 2015 (art. 373, § 1º, do CPC/15).
Nesse texto, tivemos a oportunidade de abordar o tema de forma objetiva. Mas, sem a pretensão de esgotar a discussão que se mantém aberta nos comentários para os colegas que queiram contribuir. 😉
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Advogado (OAB/PR 52.439). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Sócio fundador da Tisi Advocacia, em Curitiba-PR, com atuação em Direito Empresarial, Direito Civil, Propriedade Intelectual e Direito Desportivo....
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Meus agradecimentos, ao útil artigo publicado. Parabéns!
Olá, Vera Lucia. Fico feliz em poder ajudar. Obrigado pelo comentário. Abraço!