A Lei 14.478/22 foi criada a partir do Projeto de Lei 4401/2021, que antes era chamado de 2303/2015, e dispõe sobre a regulamentação do mercado de criptomoedas.
No preparo deste artigo percebi que a melhor forma de se compreender a finalidade da norma em análise, ou melhor, do bem jurídico tutelado e das relações porventura por ela reguladas é por meio da leitura da sua exposição de motivos, oportunidade em que pode ser observada a intenção do legislador ao atuar sobre o tema.
A Lei 14.478/22 é oriunda do Projeto de Lei 4401/2021, anteriormente conhecido como 2303/2015, dentro da confusão característica do processo legislativo brasileiro, na intenção de regular o mercado de moedas virtuais e preencher uma lacuna legal tanto no âmbito nacional quanto internacional.
A justificação do citado projeto menciona a preocupação com o uso das moedas virtuais como forma de alternativa para a lavagem de dinheiro e como fonte de financiamento para o tráfico de drogas, condutas que estão em constante evolução.
A evolução dos mecanismos para a prática de lavagem de dinheiro, oriundo do tráfico de drogas não é novidade, tratando-se de tema que abordei em minha dissertação de Mestrado, oportunidade em que menciono a maneira criativa com que as grandes organizações criminosas diversificam suas atividades, bem como as maneiras de reinserir seus ganhos ilícitos na ordem econômica.
O manuseio das chamadas moedas virtuais para lavagem de dinheiro e financiamento do tráfico ilícito de entorpecentes nada mais é do que uma evolução de mecanismos já existentes, motivo pelo qual a evolução da legislação é medida necessária para o seu combate de forma eficaz.
No artigo de hoje busco analisar a redação da Lei 14.478/2022 na intenção de regulamentar o mercado de criptomoedas, uma forma de ativo virtual. Continue a leitura! 😉
O que são ativos virtuais?
A necessidade da delimitação do conceito de ativos virtuais é reconhecida pela própria norma em análise que, em seu artigo 3º, esclarece que ativo virtual nada mais é do que a “representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos”.
Excluindo deste conceito a moeda nacional ou estrangeira digitalmente representada (bancos eletrônicos), a moeda eletrônica caracterizada pela Lei 12.865/13, os instrumentos que provejam a seu titular acesso a produtos ou serviços especificados (softwares) e ativos cujo funcionamento já estejam previstos em lei como valores mobiliários e ativos financeiros.
O conceito de ativo virtual, para efeito da Lei 14.478/2022, consequentemente exclui outros instrumentos digitais que não possam ser utilizados como representação digital de valor.
A licença para uso de determinado software ou mesmo todos os direitos autorais referentes a ele, embora presentes apenas na rede mundial de computadores e sem uma representação física, podem possuir um valor monetário específico, mas não cumprem a atribuição de moeda, de equivalente geral, na concepção econômica a respeito do tema.
Ademais, a compra e venda destas licenças ou mesmo do direito autoral sobre determinado software é de livre negociação, não estando atrelado a fatores externos como no caso de ações em bolsa ou mesmo das próprias moedas virtuais.
Na mesma direção, a participação em determinado programa de milhagens de alguma companhia aérea possui um valor específico que pode ser trocado por bens e serviços dentro de um escopo limitado de companhias dele participantes, mas o acesso concedido pela participação é bastante limitado, sendo evidente a distinção para a amplitude negocial das moedas digitais.
Considerando este escopo limitado é de se observar que a prática de lavagem de capitais como algo difícil de ser praticado nos citados programas de milhagem.
Não bastando, o manuseio de bitcoins e as oscilações em seu valor permitem a aplicação de novas formas de pirâmides financeiras que denotam a necessidade de uma nova disciplina legal como forma de coibir a sua prática.
Moedas virtuais surgem com bastante habitualidade passando por rápidos ciclos de valorização e atração de investidores até o momento de sua quebra, quando determinado bloco de aplicadores realiza a venda de todos os seus ativos, resultando em rápida – e geralmente irreversível – desvalorização, com imenso prejuízo para os demais aplicadores.
Superado o conceito de ativo virtual, para efeito da Lei 14.478/22, como algo limitado às moedas digitais, cumpre agora tecer maiores considerações acerca dos demais dispositivos legais a ela pertencentes.
Quem pode comercializar ativos virtuais?
A Lei 14.478/2022, em seu artigo 2º, é clara no sentido de que a compra e venda de ativos virtuais ficará limitada aos agentes econômicos munidos de autorização prévia de órgão ou entidade da administração pública federal, a ser disciplinado por ato administrativo próprio.
A prestadora de serviços de ativos virtuais é aquela que realiza a troca entre ativos virtuais e moeda (nacional ou estrangeira) e entre ativos virtuais (uma moeda digital por outra), bem como a transferência, custódia e administração deles.
Ademais, será considerada prestadora a empresa que participe em serviços financeiros relacionados com a oferta destes ativos no mercado, conforme disposto no artigo 5º.
As empresas autorizadas à prestação destes serviços deverão seguir algumas regras, nos termos do disposto no artigo 4º da Lei 14.478.
O primeiro deles é o respeito à livre iniciativa e concorrência. Observo que a possibilidade de concessão de autorização para operação no mercado de moedas digitais em procedimento simplificado (artigo 2º, caput) é uma forma de não limitar excessivamente o acesso a este ramo de atuação, preservando a livre concorrência e garantindo a pluralidade de atores econômicos envolvidos.
Além disso, a expressa proteção a livre concorrência submete os atores envolvidos às vedações legais existentes com relação ao controle de condutas desleais como monopólios, oligopólios ou mesmo o chamado “dumping”, em que um produto ou serviço é oferecido de maneira extremamente vantajosa para os interessados, buscando a remoção dos concorrentes deste mercado.
O segundo aspecto a ser seguido pelos prestadores de serviços neste ramo, é a submissão às boas práticas de governança, transparência, abordagem de riscos, prevenção à lavagem de dinheiro e de outras condutas ilícitas (artigo 4º, incisos II e VII).
Trata-se, na realidade, de nada mais do que a realização da intenção expressa do legislador, trazida na exposição de motivos, no sentido de prevenir o manuseio de moedas digitais para a prática de uma ampla gama de condutas ilícitas.
O terceiro aspecto é a proteção aos dados pessoais e poupança popular, bem como a defesa dos consumidores e a demanda por solidez e eficiência em suas operações (art. 4º, incisos III, IV e V).
A presença no sistema financeiro não é algo exclusivo dos grandes atores econômicos, existindo uma ampla gama de opções para pequenos investidores, indo desde a poupança até fundos de investimento (graus variados de risco) com requisitos baixos para aporte inicial.
A operação com moedas virtuais segue a mesma expectativa, ou seja, possuindo investidores com os mais variados portes econômicos.
A crise da bolsa de Nova York em 1929 demonstrou a maneira com que os pequenos investidores tendem a ser os mais atingidos por oscilações no mercado financeiro. Os pequenos investidores tendem a ter uma disponibilidade financeira mais limitada, não possuindo a amplitude em seu portfólio necessária para a absorção de oscilações no mercado.
Não por menos que a regulação do mercado de ativos virtuais visa a proteção deste pequeno investidor, equiparando-o (ainda que parcialmente) ao consumidor (art. 13) e estabelecendo regras para a sua proteção.
Desta forma, pode operar no mercado de ativos virtuais aqueles atores econômicos que tenham autorização para tal, desde que se submetam às balizas trazidas pela norma em análise.
Na hipótese de que determinado ator econômico, que opere neste mercado, não aborde adequadamente com seus clientes o risco inerente a sua atuação e ao investimento a ser realizado pode, fundamentadamente, ter a sua licença revogada por violação ao artigo 4º, inciso II, da Lei 14.478/22.
Na mesma direção, se este mesmo agente econômico não garantir o sigilo das informações de seus clientes, comercializando ou divulgando seus dados pessoais e financeiros, poderá ter a sua licença revogada (inciso III).
Quem autoriza o funcionamento no mercado de ativos?
A Lei 14.478/2022 dispõe que a autorização de funcionamento no mercado de ativos virtuais será de competência de órgão ou entidade da administração federal (artigo 2º), posteriormente atribuída ao Banco Central por intermédio do Decreto 11.563/2023.
Consequentemente, cumpre ao Banco Central (artigo 7º) :
- Autorizar o funcionamento, transferência de controle, fusão, cisão e incorporação, de prestadores de serviços neste ramo;
- Regulamentar o exercício de cargos estatutários e contratuais nestas empresas, bem como autorizar a posse e exercício de cargos de administração;
- Supervisionar a prestação de serviços;
- Cancelar as autorizações (de ofício ou a pedido);
- Dispor as hipóteses em que as operações neste ramo estarão incluídas no mercado de câmbio.
Outro ponto relevante é que as empresas a operarem no mercado de moedas digitais poderão cumular suas atividades com outras formas de atuação, seguindo regulamentação a ser editada a respeito do tema (artigo 8º), ou seja, empresas que hoje atuam no mercado financeiro (corretoras de valores e bancos privados) poderão atuar com ativos virtuais, desde que previamente autorizadas para tal.
Por fim, foi reconhecida a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor em favor dos clientes das instituições que operem com ativos virtuais, reconhecendo a sua vulnerabilidade econômica (artigo 13º).
Mais liberdade no dia a dia
Regulamentação e vacatio legis:
A Lei 14.478/2022 possui um prazo de vacatio legis de 180 dias, passando a vigorar após este período, contado de sua publicação oficial em 21/12/2022 (artigo 14), ou seja, tendo a sua vigência iniciada próximo ao momento da redação deste artigo.
Não bastando, o órgão a receber as atribuições abordadas no artigo 7º estabelecerá um prazo de ao menos seis meses para que as empresas que já operam no mercado de ativos virtuais se adequem às novas normas, regulamentando este segmento.
Isto significa que bancos privados e corretoras de valores mobiliários que já comercializem moedas digitais terão tempo para buscarem a concessão das autorizações necessárias, bem como para se adequarem às novas regras de governança, transparência e proteção do consumidor, estabelecidas com esta legislação e abordadas ao longo deste artigo.
Reitera-se que o Decreto 11.563/2023 estabeleceu ao Banco Central a competência para disciplinar o mercado de ativos virtuais, nos termos previstos pela legislação, objeto deste artigo.
Desta forma, cumpre ao Banco Central não apenas a concessão das autorizações para operar neste mercado, como também o estabelecimento das regras de governança corporativa, transparência e fornecimento de informações aos órgãos de fiscalização econômica (whistleblower).
Leia também: Guia comentado da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (13709/18)
Aspectos criminais no mercado de ativos.
Realizada leitura da exposição de motivos da norma observa-se grande preocupação do legislador ordinário em coibir a prática de condutas criminosas relacionadas com a comercialização de ativos virtuais.
Não surpreende, portanto, a presença de dispositivos diretamente relacionados com normas penais. Veja os principais:
Artigo 10º da Lei 14.478/22
O primeiro deles (artigo 10º) adiciona o artigo 171-A ao Código Penal e basicamente visa coibir a prática de golpes financeiros envolvendo ativos virtuais, as chamadas pirâmides financeiras e os conhecidos “golpes dos bitcoins”.
A pena prevista é de 04 a 08 anos de reclusão, permitindo regime inicial aberto para cumprimento de pena e a conversão da pena privativa de liberdade em duas penas restritivas de direitos, hipóteses a depender da aplicação de pena no patamar mínimo legal.
No entanto, a dinâmica mínima e máxima de penas estabelecidas obsta o oferecimento de Acordo de Não Persecução Penal, composição civil de danos, transação penal, suspensão condicional do processo e suspensão condicional da execução da pena.
Artigo 11º da Lei 14.478/22
A próxima alteração legal pode ser observada no artigo 11º da norma em análise, que adiciona o inciso I-A ao artigo 1º da Lei 7.492/1986 (crimes financeiros).
O dispositivo basicamente cumpre a função de equiparar a instituição financeira aquela que opere com ativos virtuais, ou seja, sujeitando aos ditames desta norma, incluindo a possibilidade de que seus membros pratiquem os tipos penais nela previstos, reconhecendo as instituições que operem com ativos virtuais como componentes do sistema financeiro nacional.
Artigo 12º da Lei 14.478/22
Por fim, a última alteração para questões criminais foi produzida pelo artigo 12º da Lei 14.478/2022, realizando diversas alterações na Lei 9.613/1998, a chamada Lei de Combate à Lavagem de Dinheiro.
Vejamos:
- Adicionada causa de aumento de 1/3 a 2/3 de pena para a prática de lavagem de dinheiro mediante o emprego de ativos virtuais ou por organização criminosa (artigo 1º, parágrafo 4º, da Lei 9.613/1998)
- A sujeição das empresas que operem com ativos virtuais aos mecanismos de controle previstos na Lei 9.613/1998 (artigo 9º, parágrafo único, inciso XIX, combinado com os artigos 10º e 11º).
Desta forma, as instituições que operem com ativos virtuais devem identificar adequadamente seus clientes, manter o registro de suas operações e comunicar operações suspeitas aos órgãos de fiscalização. - A introdução, disciplina e funcionamento do Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP).
Percebe-se a preocupação do legislador em combater a prática do crime de lavagem de dinheiro e de golpes diversos envolvendo ativos virtuais, ao produzir diversas alterações na legislação penal especial correlata.
Chama a atenção, no entanto, a falta de disciplina direta com relação ao tráfico de drogas, preocupação trazida na exposição de motivos da norma.
A conclusão mais plausível é de que ao se combater a lavagem de dinheiro e ocultação patrimonial, a consequência acaba sendo um combate mais efetivo ao próprio tráfico de entorpecentes, eis que as organizações criminosas acabariam privadas de uma de suas principais formas de financiamento.
Conclusão:
No artigo de hoje abordei as alterações trazidas pela Lei 14.478/2022 que regulamenta a comercialização dos chamados ativos virtuais (criptomoedas), tratando dos conceitos envolvidos, das regras para a obtenção de autorização para operar neste mercado, quem fornece esta autorização, aspectos gerais e criminais da norma.
Cumpre novamente chamar a atenção acerca do vacatio legis de 180 dias estabelecido ao final da norma, passível de estabelecer dúvidas acerca da aplicação dos seus aspectos penais a recentes casos midiáticos, relacionados com fraudes financeiras envolvendo criptomoedas.
Neste caso existe a necessidade de se conjugar a norma com conceitos como anterioridade da norma penal e/ou o caráter permanente dos delitos previstos nesta legislação ou a ela aplicáveis em decorrência de sua redação (Lei 7.492/1986).
Trata-se de uma inovação legal necessária para que o direito brasileiro se adapte à nova realidade das moedas virtuais, bem como da possibilidade da prática de crimes econômicos por meio do seu manuseio.
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Advogado (OAB/SP 318.248). Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Pós-graduado em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim). Pós-graduado em Direito...
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