A Lei nº 14.193/2021/Lei da SAF estabelece normativas próprias aplicáveis a clubes de futebol, com o objetivo de resgatar tais instituições da situação de crise que atravessam, oportunizando o ingresso de novos investimentos com maior segurança jurídica.
O futebol é praticado no Brasil há mais de 100 anos. Nesse tempo, tornou-se uma paixão nacional, compondo o patrimônio cultural brasileiro.
Muito embora a Constituição da República faça referência a práticas desportivas como um gênero, é fato que, diante da relevância da modalidade, a legislação infraconstitucional se debruçou prioritariamente sobre o futebol.
A própria Lei Geral do Desporto – Lei nº 9.615/98, chamada de Lei Pelé, foi editada com olhos para o futebol. Outras leis foram criadas com esse mesmo viés, como o Estatuto do Torcedor – Lei nº 10.671/03, e a lei que instituiu o PROFUT – Lei nº 13.155/15.
Agora, surge uma nova lei que aparenta ser promissora no intuito de soerguer os clubes e estabelecer um novo patamar ao futebol brasileiro.
Porém, embora as nobres intenções dos criadores da lei, já se vê distorções na aplicação de seus dispositivos. Será que a Lei da SAF atingirá o seu objetivo?
Neste texto será apresentado o que é a Lei 14.193, as inovações por ela trazidas e os efeitos colaterais adversos que ela já está produzindo. Confira! 😉
O que é a Lei 14193 / Lei da SAF?
A Lei nº 14.193/2021, Lei da SAF, é responsável por estabelecer normativas próprias aplicáveis a clubes de futebol, com o objetivo de resgatar essas instituições da situação de crise que atravessam, possibilitando novos investimentos com maior segurança jurídica.
Historicamente, clubes de futebol são constituídos quase que na sua integralidade como associações sem fins lucrativos. Com efeito, quando da constituição da maioria dos clubes, o futebol tinha caráter meramente recreativo, o que justificava a adoção do modelo associativo.
No entanto, esse modelo, embora hoje esteja ultrapassado no que diz respeito à governança e à sustentabilidade, ainda permanece sendo praticado.
Alguns motivos para isso dizem respeito à chamada “cartolagem”, onde há hegemonias políticas nos quadros dos clubes que mantém o seu controle em determinada pessoa ou grupo de pessoas, e os benefícios fiscais que as associações sem fins lucrativos gozam.
Isso contribuiu para que clubes assumissem dívidas que chegaram em 2021 a superar a casa dos 10 bilhões de reais.
Mesmo após vários incentivos legais que foram dados ao longo dos anos, esse cenário não se modificou significativamente e, agora, cria-se uma lei visando dar uma nova chance aos clubes de futebol.
Nas palavras do Senador Rodrigo Pacheco:
A tônica do projeto, e agora da lei, é criar um novo sistema do futebol brasileiro, mediante a regulamentação da SAF, estabelecer normas de governança, controle e transparência, instituir meios de financiamento da atividade futebolística e prever um sistema tributário próprio”.
O objetivo da Lei, portanto, é criar um “novo mercado do futebol”, como pontua Rodrigo Monteiro de Castro, um dos idealizadores da Lei, que arremata:
Muito além da instituição de um tipo (ou subtipo) societário, ambiciona-se a criação de um sistema integrado e sustentável, composto pelos elementos necessários à formação de um novo e pujante mercado do futebol. Nesse sistema, à SAF cumpre a função nuclear de atração e integração de seus componentes”.
Portanto, a Lei da SAF instituiu a chamada Sociedade Anônima do Futebol como um subtipo societário específico para o futebol.
Além disso, a Lei 14.193/21 implementou caminhos para a recuperação dos clubes endividados, por meio do Regime Centralizado de Execuções (arts. 14 a 24) ou pela Recuperação Judicial e Extrajudicial (art. 25).
O que muda com a SAF?
A Lei da SAF criou um novo caminho, além dos já existentes, para constituição de entidades de prática desportiva, especificamente para a modalidade do futebol profissional.
Embora a Lei 14.193/21 tenha operado alterações na Lei Pelé e no Código Civil, o regime até então existente não se alterou. Ou seja, a Lei da SAF não obriga que clubes de futebol passem a adotar o formato de Sociedade Anônima do Futebol.
Os clubes existentes e novos clubes que surgirem podem continuar adotando o formato associativo ou qualquer outra modalidade de sociedade empresária prevista em nossa legislação, tais como a sociedade limitada e a sociedade anônima, esta regulamentada pela Lei 6.404/76 – Lei da SA.
A propósito, é importante salientar que a Lei 6.404/76 aplica-se à SAF naquilo que não for tratado de forma expressa na Lei 14.193/21.
De igual modo, a Lei Pelé também se aplica à SAF, porquanto inserida no sistema desportivo regulamentado pela Lei Pelé. Nesse aspecto, concordo com Rodrigo Monteiro de Castro, que diz:
a relação entre elas [Lei Pelé e Lei da SAF] não é de subsidiariedade, mas de convivência, naquilo que for aplicável”.
Quem criou a SAF?
A Lei nº 14.193/2021 é resultado do Projeto de Lei nº 5.516, de 2019, de autoria do Senador Rodrigo Pacheco e de relatoria do Senador Carlos Portinho. Contribuíram na elaboração do texto os juristas Rodrigo Monteiro de Castro e José Francisco Manssur.
Quais as formas de constituição da SAF?
Os artigos 2º e 3º da SAF disciplinam as formas de constituição da SAF.
Rodrigo Monteiro de Castro destaca que os formatos ali descritos não são taxativos, registrando que:
No âmbito societário, outras técnicas se dispõem à implementação de reorganizações societárias e podem ser aproveitadas sem que se contraponham à natureza da SAF ou ao conteúdo da Lei 14.193/21. A verificação e confirmação serão feitas, portanto, de modo casuístico.”
Deste modo, os meios indicados pela Lei da SAF são os seguintes:
Transformação:
O art. 1º, inciso I, da Lei 14.193/2021 assim dispõe:
Importa esclarecer que a lei, conceitualmente, trata como clube a associação civil regida pelo Código Civil (art. 1º, § 1º, I) e como pessoa jurídica original a sociedade empresária (art. 1º, § 1º, II).
A transformação é definida pelo artigo 220 da Lei 6.404/76 da seguinte maneira:
Por sua vez, o artigo 1.113 do Código Civil assim disciplina:
Nos termos do inciso I, o clube de futebol já existente, independentemente de ser associação sem fins lucrativos ou uma sociedade empresária, poderá optar por se transformar em uma Sociedade Anônima do Futebol.
Cisão:
A cisão está prevista no artigo 2º, inciso II, da Lei da SAF:
Rodrigo Monteiro de Castro esclarece que:
departamento [de futebol] deve ser entendido como um conceito abstrato, composto pelo patrimônio do clube ou da pessoa jurídica original relacionado ao futebol”.
Na cisão, coexistirão duas entidades:
- O clube, ou pessoa jurídica original;
- A Sociedade Anônima do Futebol.
Iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento:
O artigo 2º, inciso III, da Lei da SAF assim dispõe:
A particularidade trazida por esse dispositivo cinge-se na desnecessidade da pluralidade de acionistas, em clara exceção à regra descrita no artigo 80, I, da Lei 6.404/76.
Dropdown:
O dropdown está previsto no artigo 3º da Lei da SAF, que assim dispõe:
Ao contrário dos casos de transformação e de cisão, em que os acionistas da SAF passam a ser os associados do clube ou os sócios da pessoa jurídica original, no dropdown o próprio clube ou pessoa jurídica original passa a ser acionista da SAF.
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Além dos artigos acima abordados, relativos às formas de constituição da SAF, destaco os seguintes artigos da Lei 14.193/21:
Da responsabilidade da SAF pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original (Art. 9º)
O artigo 9º da Lei da SAF reza o seguinte:
Embora a intenção do legislador com a redação desse artigo, aparentemente, tenha sido resguardar a SAF das obrigações anteriores do clube ou da pessoa jurídica original, a dicção “exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social” abre o ensejo para que ocorra a transferência de um passivo pretérito para a SAF.
Foi com base nisso que o Cruzeiro Esporte Clube – Sociedade Anônima do Futebol, foi condenado a arcar, de forma solidária com o clube originário, com dívida trabalhista de ex-empregado (TRT3 – autos nº 0010052-44.2022.5.03.0012).
De igual maneira, a SAF Botafogo foi condenada solidariamente por dívida trabalhista anterior (TRT1 – autos nº 0100513-46.2022.5.01.0003).
A situação fica ainda mais grave para a SAF diante da previsão do artigo 448-A da Lei 13.467/17, que estabelece que as dívidas trabalhistas, no caso de sucessão, transferem-se ao sucessor.
Portanto, ainda que os processos citados sejam recentes e inexista posicionamento dos tribunais superiores unificando a matéria, os investidores que pretendam ingressar no “novo mercado do futebol” deverão atentar-se às dívidas dos clubes de futebol, pois há o risco de responsabilização solidária da SAF.
Regime Centralizado de Execuções (Art. 14 a 24 da Lei da SAF)
O Regime Centralizado de Execuções previsto no artigo 14 e seguintes, a exemplo do artigo 9º, tem gerado interpretações distintas.
Há quem defenda que qualquer entidade de prática desportiva poderá adotar referido regime, mesmo que não tenham a intenção de constituir a SAF.
Foi o que ocorreu, por exemplo, no caso envolvendo a Associação Portuguesa de Desportos, no âmbito do TRT da 2ª Região (autos nº 0004012-82.2022.8.26.0100).
De outro lado, o entendimento majoritário é no sentido de que o Regime Centralizado de Execuções só poderá beneficiar as entidades que venham a constituir a SAF.
Em linha com o entendimento majoritário, o Tribunal Superior do Trabalho editou o Provimento CGJT nº 01, de 19 de agosto de 2022, que alterou o artigo 153 da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho para constar que:
o RCE disciplinado pela Lei nº 14.193/21 destina-se única e exclusivamente às entidades de prática desportiva (…) que tenham dado origem à constituição de Sociedade Anônima de Futebol”.
Recuperação Judicial (Art. 25)
É consabido que a Lei 11.101/05 aplica-se somente ao empresário e à sociedade empresária.
O artigo 25 trouxe importante inovação, ao permitir que clubes associativos de futebol possam gozar dos benefícios da Lei de Falências.
Em verdade, o que o referido dispositivo fez foi legalizar algo que já vinha ocorrendo de forma isolada no Judiciário, onde houve, ao arrepio da lei, casos de deferimento da recuperação judicial de clubes associativos.
Ao contrário do Regime Centralizado de Execuções, a Recuperação Judicial poderá ser requerida por clube associativo independentemente de ter constituído a Sociedade Anônima do Futebol.
Vejo com certa ressalva a possibilidade aberta pelo artigo 25, pois, em tese, podemos estar diante de violação do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República.
Isso porque, até a edição da Lei da SAF, os negócios jurídicos realizados pelos clubes de futebol de natureza associativa tinham como base jurídica a impossibilidade de se deferir a recuperação judicial.
Tamiris Vilar Brufatto assim define a teoria da base objetiva do negócio:
Já a base objetiva, por sua vez, é determinada pelo conjunto de circunstâncias cuja existência ou a manutenção é essencial para o contrato, independentemente da consciência dos contratantes, sendo que sem essas circunstâncias, o contrato deixaria de ter sentido, fim ou objeto. Dessa forma, a base objetiva do contato leva em consideração a possibilidade de realização da finalidade do contrato e a intenção conjunta das partes contratantes, sendo que o abalo na base objetiva deve ser enfrentado dentro da teoria da impossibilidade”.
Ou seja, os contraentes com os clubes associativos tinham como certo que as obrigações assumidas pelos clubes deveriam ser adimplidas em sua integralidade.
Em caso de inadimplemento, o patrimônio clubístico ficaria sujeito à constrição até satisfação integral do crédito, salvo por eventual concessão feita voluntariamente pelo credor ou pela insolvência do clube.
O art. 25 da Lei 14.193/21 rompe com essa legítima expectativa dos credores, que poderão ter de se submeter ao processo de recuperação judicial requerida pelo clube devedor, sendo impelidos a aceitar substancial desconto no valor de seus créditos por ocasião de aprovação do plano de recuperação judicial.
Conclusão
Após a promulgação da Lei da SAF, como uma panaceia, muitos clubes têm se apressado em constituir a Sociedade Anônima do Futebol.
Ocorre que, certamente, o modelo instituído pela Lei 14.193/21 não será proveitoso para entidades de prática desportiva que não tenham apelo para atrair investimentos.
Há casos de clubes que estão em situações financeira e desportiva delicadas, que ingressaram com pedido de Recuperação Judicial, com base na Lei da SAF, mas que possuem pouca possibilidade de verem aprovados os Planos de Recuperação, pois não têm previsão de receitas de curto e médio prazo para arcar com as dívidas.
Como se sabe, a consequência para os casos em que não houver a aprovação do Plano de Recuperação Judicial é a sua convolação em falência, conforme previsto nos artigos 58-A e 73, III, da Lei 11.101/05.
Ainda assim, no que diz respeito à modernização do futebol brasileiro, a Lei da SAF poderá ser revolucionária. Isso porque ela oportunizará, ao mesmo tempo, o encerramento da atividade de clubes que há muito tempo são insolventes, e fomentar o ingresso de novos investidores aos clubes que tenham apelo desportivo e financeiro, fortalecendo-os de modo a tornar o futebol brasileiro mais competitivo no cenário internacional.
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Conheça as referências deste artigo
BRUFATTO, Tamiris Vilar. Teoria da base objetiva do negócio jurídico. São Paulo, Almedina, 2020.
CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de (Coord.). Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol Lei nº 14.193/2021. São Paulo, Quartier Latin, 2021.
Advogado (OAB/PR 52.439). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba. Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Sócio fundador da Tisi Advocacia, em Curitiba-PR, com atuação em Direito Empresarial, Direito Civil, Propriedade Intelectual e Direito Desportivo....
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sou torcedor do Bahia e gostaria de saber quais os meios para encerrar o contrato com o investidor com essa lei da saf ?