O marco temporal é uma tese jurídica que está em julgamento pelo STF e que pretende alterar a demarcação das terras indígenas. Segundo essa tese, seriam consideradas terras de tradicional ocupação indígena aqueles que tivessem sido habitadas na promulgação da CF/88.
Se com o advento da Constituição Federal houve reconhecidamente a proteção dos direitos indígenas, a Carta Magna também protegeu o direito da propriedade, a segurança jurídica, a boa-fé, a confiança, a liberdade, a dignidade da pessoa humana, a livre-iniciativa e o trabalho, a razoabilidade e a proporcionalidade.
São muitas as circunstâncias envolvidas nos casos, motivo pelo qual o tema se trata de uma questão de difícil solução. A estabilidade das relações e a certeza da validade dos atos praticados pelo Estado são medidas vitais à concretização do princípio da legalidade, da boa-fé, da confiança, do Estado Democrático de Direito e da Justiça.
Quaisquer hipóteses de insegurança conduzem a um estado de coisas que exigem do Estado resposta adequada, justa e sensata, sob pena de instauração do caos social. Por isso, o julgamento do caso do marco temporal atrai a atenção de juristas e da sociedade em geral.
Com isso em mente, hoje te convido a conhecer mais sobre essa tese jurídica. Irei abordar o seu surgimento, seu impacto para os indígenas e todos os seus principais pontos.
Continue a leitura para saber mais sobre o tema 😉
O que é o marco temporal?
É uma tese jurídica, que traz a ideia de que seriam consideradas terras de tradicional ocupação indígena aquelas que já tivessem sido habitadas por indígenas, em caráter permanente, na promulgação da Constituição Federal em 05 de outubro de 1988.
Em relação aos povos indígenas, a CF/88 traz no seu art. 231:
Além disso, a Constituição Federal definiu, no art. 67, que a União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição.
Requisitos da demarcação de terras indígenas
Ainda, segundo a Constituição Federal, são requisitos para a caracterização de terras de tradicional ocupação indígenas:
- ser habitadas por comunidades indígenas em caráter permanente;
- utilizadas para suas atividades produtivas;
- preservação dos recursos ambientais necessário a seu bem-estar;
- necessária a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
A partir disso, caso existissem eventuais títulos aquisitivos que sobre as terras demarcadas, eles seriam considerados nulos. Dessa forma, sem direito à indenização à propriedade.
Qual o surgimento do marco temporal?
Com o passar dos anos, começaram a ser identificados casos em que, durante a promulgação da Constituição Federal, já não existiam mais indígenas ocupando tal local.
Em alguns desses locais, já haviam se constituído cidades, comunidades rurais e propriedades rurais produtivas. Algumas delas com o apoio e regularização fundiária promovido pela própria União e Estados.
Com esse dilema em mãos, começou a surgir a tese jurídica do marco temporal.
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O caso Raposa Serra do Sol, demarcação localizada no Estado de Roraima, foi um caso relacionado a esse dilema jurídico. Aqui, o STF trouxe pela primeira vez o termo marco temporal.
Esse julgamento não foi o único a ser levado até a Suprema Corte, já que a partir do julgamento do RE 219.098-3 houve a edição da Súmula 650:
Os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto.”
Nesse julgamento, ela trouxe:
Conclui-se, assim, que a regra definidora do domínio dos incisos I e XI do artigo 20 da Constituição de 1988, considerada a regência seqüencial da matéria sob o prisma constitucional, não alberga situação como a dos autos, em que, em tempos memoráveis, as terras foram ocupadas por indígenas. Conclusão diversa implicaria, por exemplo, asseverar que a totalidade do Rio de Janeiro consubstancia terras da União, o que seria verdadeiro despropósito.”
Como dito anteriormente, foi a partir do caso Raposa Serra do Sol que o STF passou a adotar a tese do marco temporal em suas decisões. Como é visto nos seguintes julgados:
Seguindo a linha do STF, alguns outros tribunais passaram a considerar o marco temporal para tomar as decisões. Isto é, adotando o que chamaram de “fato indígena”. Ou seja, levar em conta a existência de comunidade indígena em determinado local durante a promulgação da CF/88.
Nesse mesmo sentido, a Advocacia-Geral da União se manifestou ao editar a Portaria 303/2012, homologada pela Presidência da República (Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU), onde se propôs a adequar as demarcações futuras aos termos das condicionantes fixadas no julgamento do caso Raposa Serra do Sol.
Existe legislação para o marco temporal?
No ano de 2017, por meio do RE 1017365 SC, o Supremo Tribunal Federal colocou em repercussão geral o Tema 1031. O objetivo era definir o estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena, à luz das regras dispostas no art. 231 do texto constitucional.
Com isso, tivemos a suspensão nacional de todos os casos, inclusive no âmbito administrativo, das demarcações e/ou revisões de terras indígenas até que o Plenário se decidisse sobre a questão. A partir disso, criando efeito vinculante a todos os casos judiciais e no âmbito da Administração Pública.
Sem dúvida alguma, o caso causa repercussão em todo o país, não só pelo número de pessoas que serão atingidas, mas pelos próprios efeitos dessa decisão. Por isso, Supremo Tribunal Federal admitiu a participação de inúmeros amici curiae, dentre eles:
- Associações e Confederações;
- Federações e Sindicatos de produtores rurais;
- Estados Federados e Municípios;
- Comunidade Indígenas, Entidades de proteção do meio ambiente e comunidades tradicionais;
- etc.
Atualmente o julgamento está suspenso, em virtude de pedido de vista do Ministro Alexandre de Moraes. Porém, temos o seguinte até então:
- O voto do relator Ministro Edson Fachin, é pela superação do marco temporal;
- O voto divergente, do Ministro Nunes Marques, é pela manutenção do marco temporal.
O que é o indigenato?
O voto do Ministro Edson Fachin adota perspectiva divergente do marco temporal até então aplicado pelo Supremo Tribunal Federal. Para ele, o reconhecimento da posse das terras que os indígenas ocupam remonta:
- o Alvará Régio de 1680;
- Lei de Terras de 1850;
- Constituição Federal de 1934 e 1946.
Além disso, ele também traz a Constituição de 1967, que incluiu como domínio da União as terras ocupadas por indígenas. A partir disso, o relator propõe então a revisão da teoria do marco temporal adotado no julgamento da Pet 3388, adotando-se outra, denominada indigenato.
Ou seja, que haveria um domínio primário das terras pelos indígenas, independentemente da data da Constituição Federal e de uma determinada declaração pelo Estado.
Dessa forma, independentemente da data em que a comunidade indígena estivesse na terra, caso houvesse reivindicação, seriam considerados nulos eventuais títulos de propriedade, sem direito a indenização, e a posse seria transferida aos indígenas e a propriedade à União.
Como direito originário da comunidade indígena, eventual posse do imóvel por não-índigenas seria considerada ilegal, cabendo indenização somente das benfeitorias realizadas de boa-fé.
Como o marco temporal afeta os indígenas?
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, o Brasil possui hoje, de um total de 1.298 terras indígenas, 829 demarcações não finalizadas, ou sequer iniciadas.
Ou seja, os efeitos do julgamento do Tema 1031, tanto para a tese do marco temporal, quanto para o Indigenato atingiria todas essas demarcações, com efeitos sociais imensos.
Aqueles que defendem a tese do indigenato argumentam que a não declaração das terras indígenas implicaria em absoluta extinção de povos indígenas. Isso porque, sem território, sua cultura, sua língua, seus lugares sagrados e sua descendência correria perigo.
Aqui vale mencionar que, anteriormente à Constituição Federal, vigorou no país a política assimilacionista. Seu objetivo era a progressiva integração do indígena à sociedade nacional – e branca – a fim de que deixasse paulatinamente sua condição indígena.
Com a chegada da Constituição Federal, por sua vez, tivemos um novo paradigma onde os indígenas tiveram a sua organização social reconhecida. Não só isso, mas o documento também trouxe reconhecimento para:
- costumes;
- línguas;
- crenças e tradições (caput do artigo 231, CF).
Portanto, não há dúvidas que a Constituição Federal reservou especial proteção às comunidades indígenas e suas respectivas terras. Seguindo essa linha, a problemática da proteção das Terras Indígenas é de extrema importância. Isso porque sem elas, os povos indígenas ficariam à mercê, sem sua moradia assegurada.
Porém, cabe ao Estado atuar com coerência no processo de demarcação, a fim de não submeter pessoas inocentes, de boa-fé, às vicissitudes que uma ação dessa natureza pode causar, pois muitas vezes acabam tendo que desocupar suas propriedades, construída com tanto esforço, para dar lugar aos índios.
Aí entra o papel do Estado e do Judiciário, que deverão atuar de forma coerente e justa nos processos de demarcação. Dessa forma, garantindo que nem os povos indígenas tenham seus direitos ameaçados e nem as pessoas de boa-fé tenham que desocupar suas propriedades.
Como funciona a demarcação de terras indígenas?
A Lei 6.001/73 prevê inúmeras formas de proteção das terras indígenas. Conforme artigo 17 deste estatuto, temos o seguinte entendimento:
Art. 17. Reputam-se terras indígenas:
I – as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV, e 198, da Constituição;
II – as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;
III – as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.
As terras ocupadas são aquelas hoje presentes no art. 231 da Constituição Federal, é sobre a qual o STF tem aplicado a tese do marco temporal. As terras reservadas, faladas no artigo 26, são subdivididas em:
- reserva indígena;
- parque indígena;
- e colônia agrícola indígena;
E, para estarem com a sua proteção e demarcação constituída, elas dependem da ação do Poder Público. Além disso, nos termos do Estatuto do Indígena, são assim conceituadas:
Quem conduz a demarcação?
Além disso, o procedimento de demarcação das terras de tradicional ocupação indígena, está previsto no 1.775/96 e se constitui de diversas fases, conduzidas pela FUNAI e o Ministério da Justiça.
O processo de demarcação é coordenado por antropólogos, já que envolve conhecimentos técnicos de natureza histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e fundiária. Dessa forma, garantindo, nos termos do art. 2º, § 1º, que os índios participem de todas as fases do processo administrativo.
As fases da demarcação
A primeira fase consiste no levantamento de provas que irão fundamentar a demarcação. O Presidente da FUNAI edita Portaria – a ser publicada no Diário Oficial da União – constituindo Grupo Técnico (GT), formado, de preferência, por servidores do próprio órgão e coordenados por um antropólogo.
O Grupo Técnico realiza estudos de natureza antropológica, etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário. Membros da comunidade científica ou de outros órgãos podem ser solicitados pelo grupo a prestar colaboração.
Concluídos os trabalhos, o Grupo Técnico apresentará relatório circunstanciado à FUNAI, caracterizando a terra indígena a ser demarcada. O prazo para conclusão desta fase é estipulado pela Portaria que constitui o Grupo Técnico.
Esta fase torna pública a proposta de demarcação da área, proporcionando a terceiros as informações necessárias à sua contestação. O relatório de identificação e delimitação é submetido à aprovação do Presidente da FUNAI.
Aprovando-o, este tem prazo, de quinze dias, para enviar resumo, juntamente com memorial descritivo e mapa da área, para futura publicação no DOU e no Diário Oficial Estadual.
A publicação tem que ser afixada na sede da Prefeitura Municipal onde se encontre a área a ser demarcada. A partir daí, aberta a fase de contestação, os interessados podem apresentar os elementos contrários ao relatório do Grupo Técnico.
As contestações podem ser feitas até noventa dias após a publicação do relatório do Grupo Técnico (GT). Neste caso, podem apresentar contestações os Estados e municípios em que se localiza a área da demarcação, bem como eventuais atingidos pela demarcação e demais interessados.
Com isso, a FUNAI analisa e emite opinião sobre a contestação apresentada e o Presidente do órgão tem sessenta dias (após o encerramento do prazo para as contestações), para encaminhar toda a documentação ao Ministro da Justiça.
Ele terá o papel de analisar os autos e julgar sobre a procedência ou não das contestações. Ao receber os autos, o Ministro da Justiça tem 30 dias para tomar as seguintes decisões se:
- não houver contestação, e os autos estiverem corretos, o Ministro da Justiça edita imediatamente a Portaria Declaratória de ocupação tradicional indígena;
- houver contestação, e os autos estiverem corretos o Ministro da Justiça despacha julgando procedente ou improcedente a contestação;
- entender que há situações a ser melhor esclarecidas, o Ministro da Justiça devolve os autos à FUNAI, a fim de realizar novas diligências. A FUNAI tem noventa dias para realizá-las, mas uma vez feito isso, o decreto 1.775/96 não prevê prazos para a nova análise e decisão Ministerial;
- entender que não há provas que a área é de ocupação tradicional indígena, o Ministro da Justiça desaprova a identificação, devolvendo os autos à FUNAI, mediante decisão fundamentada.
- entender que os autos se encontram bem fundamentados, se não houver contestação ou se tiver julgado improcedente a contestação, o Ministro da Justiça edita Portaria Declaratória da ocupação tradicional indígena.
A Portaria é publicada no DOU, delimitando a superfície em hectares, perímetro aproximado em quilômetros e as coordenadas geográficas dos limites da área. Por último, determina que seja submetida à demarcação administrativa pela FUNAI, com prazo para esta fase de 30 dias.
Na fase de demarcação administrativa, são fixados marcos nos limites determinados pela Portaria Declaratória. Esta fase é também chamada de demarcação física, pois é quando são abertas as picadas e fixados os marcos. O trabalho geralmente é feito por empresa especializada, contratada pela FUNAI, mediante licitação.
Ela também pode ser efetuada pelos próprios indígenas, através de convênios com o órgão. No caso desta fase, não temos um prazo estipulado.
Decreto presidencial
Após o seu término, segue-se para a aprovação final da demarcação pelo Chefe do Poder Executivo Federal. Ela é feita mediante Decreto da Presidência da República, após a realização dos trabalhos de demarcação administrativa, e sua homologação é publicada no DOU.
O Decreto não prevê prazo para a Presidência da República realizar a homologação da demarcação. E, depois de publicado o Decreto de Homologação, a FUNAI tem 30 dias para requerer o registro da área como terra de ocupação tradicional indígena e bem da União no Cartório de Registro de Imóveis da respectiva Comarca, bem como na Secretaria do Patrimônio da União.
Ultrapassadas todas essas fases e após o registro da área nos órgãos competentes como de ocupação tradicional indígena, nos termos do mencionado no artigo 231, § 6º, da CF, os antigos proprietários ocupantes dessa área serão “desintrusados” (retirados do local) e caberá indenização, tão somente, pelas benfeitorias construídas de boa-fé.
Conclusão
Diante de todas as circunstâncias apresentadas ao longo do texto, é possível entender que a melhor alternativa é a ponderação dos interesses envolvidos, de modo a buscar a solução mais justa, menos onerosa e mais sensata na análise do tema.
É preciso compatibilizar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade ao caso concreto, e que devem orientar a Administração, além de se tratar de pontos norteadores indispensáveis na formação de justiça.
Em sociedades complexas, só ocorre a colisão entre os princípios, e a ponderação dos interesses, visa, em última instância, dar efetividade ao objetivo maior do Direito que é obter a paz social.
Robert Alexy, em “Direitos Fundamentais, Ponderação e Racionalidade”, afirma:
valores como princípios são propensos a colidir. Uma colisão de princípios somente por ponderação pode ser resolvida.”
Dessa forma, o papel do Poder Judiciário é proteger a ordem jurídica, não podendo instaurar no país clima de total insegurança, sobretudo diante da atual quadra histórica que se rompe sobre o país ataques às Instituições da República.
O STF, como guardião da Constituição (art. 102, CF), terá a última interpretação da Constituição Federal. Isso porque as Cortes Constitucionais no mundo ocidental têm desempenhado importante papel na interpretação do Direito e tomada de decisões, sobretudo no que diz respeito aos Direitos Fundamentais.
Para tanto, foram desenvolvidas inúmeras técnicas de julgamento, seja:
- a designação de audiências públicas;
- admissão de amicus curiae;
- modulação de efeitos;
- suspensão do julgamento;
- debates em plenário;
- inspeções judiciais;
- produção de provas, etc.
Todos esses elementos visam aprimorar o controle de constitucionalidade e admitir a participação de toda a sociedade civil e o poder público na interpretação constitucional.
Para quem quiser se aprofundar ainda mais sobre o marco temporal e o indigenato, sugiro acessar, no sistema do Supremo Tribunal Federal, o RE 1017365 SC.
Na ação, é possível acessar os pareceres e memoriais de inúmeras entidades habilitadas como amici curiae que expõem suas teses, tanto a do marco temporal quanto ao do indigenato.
Além disso, Constituições Comentadas de diversos constitucionalistas do país tratam do tema. Também sugiro a leitura de processualistas que tratam do tema dos precedentes, controle de constitucionalidade e técnicas de julgamento das Cortes Constitucionais.
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Advogado (OAB 30.897/SC | OAB 85.247/PR). Bacharel em Direito pela UNISINOS - Universidade do Vale dos Rio dos Sinos. Sócio-fundador de Kohl & Leinig Advogados Associados. Sou especialista em Direito Agrário e Ambiental aplicado ao Agronegócio e também em Direito...
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