A presunção de inocência, garantia fundamental expressa em nossa Constituição Federal, assegura que nenhuma pessoa poderá ser considerada culpada da prática de crime antes de ser condenada judicialmente em decisão definitiva.
Em um país onde o povo sofre tanto com a falta de segurança pública, é natural que a população se sinta incomodada a ponto de tentar encontrar uma resposta que traga rápida solução do problema.
É nesse contexto que, não raras vezes, as consequências processuais da presunção de inocência se tornam objeto de duros questionamentos e críticas, inclusive em matérias jornalísticas.
Isso porque uma das consequências da presunção de inocência é a revogação da prisão preventiva – quando o suspeito é solto para responder o processo em liberdade, o que desperta revolta, especialmente em casos de crimes que chocaram a população e que é alvo de grande cobertura midiática.
Mas é importante compreender que a presunção de inocência é muito mais do que o motivo para manter livre alguns dos que são suspeitos ou acusados criminalmente.
Para entender melhor o quanto esse é um instituto importante, continue a leitura!
O que é presunção de inocência?
A presunção de inocência é um princípio jurídico, atualmente fundamentado na Lei Maior, integrando o rol dos direitos mais relevantes do cidadão: o das garantias fundamentais individuais.
Presunção de inocência como norma jurídica
De forma expressa, a nossa Constituição Federal, de 1988, prevê que
Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (art. 5º, LVII).
Ou seja, antes que o processo penal se encerre, o acusado não poderá ser tratado como se culpado fosse.
É relevante observar que, prescrito no rol das garantias fundamentais, o princípio da presunção de inocência não pode ser revogado de nenhuma forma, já que compõe aquilo que conhecemos como “cláusula pétrea”, ou seja, aquelas cuja abolição é vedada pela própria Constituição Federal (art. 60, §4º, IV).
Ainda que o princípio da presunção de inocência não fosse assegurado pela Constituição Federal, deveria ser observado no ordenamento jurídico brasileiro, já que, pela Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, promulgada pelo Decreto n. 678/1992, o acusado de qualquer delito “tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (artigo 8).
Presunção de inocência na prática
Já está bem estabelecido que o princípio da presunção de inocência é bem consolidado como norma jurídica, e, assim, resta entender o que a existência desse princípio significa na vida do cidadão e da coletividade.
Se “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, então o suspeito ou acusado não poderá sofrer os efeitos da condenação criminal antes do término do processo.
Assim, se uma pessoa é presa em flagrante, e continua presa enquanto é investigada pela autoridade policial e, depois, julgada na forma da lei, essa prisão deve ser decretada por juiz, e o julgador não poderá decretá-la em razão de entender que a pessoa é culpada do ato criminoso pela qual foi presa em flagrante.
Por isso diz-se que o suspeito ou acusado, quando não responde ao processo em liberdade, está sob prisão cautelar (prisão preventiva ou prisão temporária), que tem requisitos totalmente diferentes da atribuição de culpa pela prática do crime investigado ou julgado.
Além da pena privativa de liberdade (prisão), antes do trânsito em julgado da condenação não pode haver a imposição e cobrança de pena de multa, nem de quaisquer outros efeitos da condenação, como a perda da condição de réu primário, perda de bens e valores, perda de cargo público ou outros previstos em lei (saiba mais: art. 91, 91-A e 92 do Código Penal).
O princípio da presunção de inocência se aplica, também, diretamente na decisão sobre a culpa.
A famosa máxima “in dubio pro reo” (ou seja, a dúvida favorece o réu) decorre da presunção de inocência. Afinal, se a única presunção que se admite é a de inocência, caso a culpa não seja comprovada em processo criminal, o acusado deve ser absolvido.
Qual a importância da presunção de inocência?
Se todos devem ser presumidamente inocentes até condenação definitiva em processo criminal, e os processos no Brasil podem levar anos até seu término, pode-se acabar tendo a impressão de que o princípio da presunção de inocência é, acima de qualquer coisa, um obstáculo à segurança pública.
A realidade, porém, é diferente.
Como bem pontua NUCCI (2024, p. 58), um dos grandes estudiosos do Direito Penal:
O princípio da presunção de inocência não afronta o direito à segurança, nem privilegia de modo absoluto o direito à liberdade”.
O princípio da presunção de inocência protege a liberdade dos cidadãos. Podemos compreender sua importância se considerarmos que a autoridade responsável pela segurança pública, quando ocorre o crime, é sempre pressionada para que ofereça rápida resolução do caso.
Essa pressão vem tanto da população quanto dos poderes políticos. Dessa forma, não é incomum que os inquéritos policiais e as ações penais sejam direcionadas a pessoa que “parece” culpada.
Assim, a presunção de inocência assegura que suspeitos e acusados não sejam tratados de acordo com a aparência, mas com o que a decisão judicial transitada em julgado define, após o devido processo legal.
CONCI (in Agra; Bonavides; Miranda, 2009) ensina que o princípio busca maior justiça e assertividade nas condenações criminais:
O princípio da presunção da inocência busca evitar os juízos condenatórios antecipados contra o acusado, sem uma análise detida por sobre os fatos e a intensidade das provas […].
[…] a força punitiva do Estado, por sobre os direitos fundamentais, deve aguardar que não
mais pairem dúvidas a respeito da inocência do indivíduo […]. Isso acaba por diminuir a possibilidade de que um erro leve a uma condenação.”
Embora as autoridades ligadas à segurança pública trabalhem com boas intenções, não estão livres de cometerem erros – e esses erros podem custar anos da liberdade de um inocente.
Veja-se que, mesmo com a garantia constitucional de que se presume a inocência, ainda temos casos de condenados que, durante o cumprimento da pena, conseguem comprovar a inocência. E isso acontece mesmo em países que costumamos crer que tenham um sistema de segurança pública e judiciário mais bem estruturado.
Apenas para ilustrar, vejamos esses exemplos, publicados em grandes veículos midiáticos:
G1: Condenado a 170 anos de prisão, homem consegue provar inocência: ‘Liberdade é poder recomeçar, poder lutar’
leia mais
Por Fantástico – 19/05/2024 23h08
“Ele ficou três anos preso até que exames de DNA provaram que ele não era o verdadeiro criminoso. Mas a foto dele continuava no cadastro da Polícia Civil. Para a polícia, Edmilson era o ‘maníaco’ que havia […] em Barueri e na cidade vizinha Osasco, entre 2010 e 2012.”
G1: Homem condenado a 17 anos por morte da mulher prova inocência após quase 2,5 anos preso e é solto: ‘Piores anos da vida’
Corretor de seguros conseguiu, com ajuda da Defensoria e uma nova prova, reabrir caso e provar que a mulher morreu após crise de epilepsia. Laudo do IML havia atestado que mulher tinha sido vítima de estrangulamento, e não citou a doença prévia dela.
Por Danilo Vieira, Marco Antônio Martins, g1 Rio e RJ2 – 04/04/2024 19h37
Consultor Jurídico (CONJUR):
Documento falso
Vigia comprova inocência após nove anos de condenação
Redação ConJur- 25 de setembro de 2012, 7h22
“Após cerca de nove anos, Rafael da Silva provou ter sido vítima de erro do sistema criminal e teve sua inocência reconhecida no último dia 31 de julho. Ele foi condenado, em 2003, por porte ilegal de arma, após o verdadeiro culpado ter utilizado documentos falsos em seu nome.”
BBC NEWS Brasil:
O homem que foi condenado à morte e passou 43 anos na prisão até provar sua inocência
Alessandra Corrêa
De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil – 1 julho 2019
“Em 1976, o americano Charles Ray Finch foi acusado do assassinato do dono de um posto de gasolina no Estado da Carolina do Norte. […]
Agora, aos 81 anos de idade, 43 deles passados na prisão por um crime que não cometeu, Finch conseguiu finalmente provar sua inocência e ser libertado.”
Os casos apresentados são apenas pouquíssimos exemplos que demonstram o quão grave pode ser um erro de julgamento. E tais erros, como se vê, ainda ocorrem mesmo após todas as fases dos processos criminais, o que aponta para quantos equívocos mais haveria caso não houvesse a presunção de inocência.
Quando acaba a presunção de inocência?
Conforme expresso na Constituição Federal, é finda a presunção de inocência quando ocorre o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Ou seja, acaba a presunção de inocência quando já não há mais recursos processuais que possam ser apresentados, e a decisão condenatória se torna definitiva.
Princípios decorrentes do princípio da presunção de inocência:
O princípio da presunção de inocência tem como efeito principal a imposição do encargo de comprovar as alegações sobre a acusação.
Afinal, se o acusado é presumidamente inocente, se no processo não forem produzidas provas – nem de culpa nem de inocência, prevalece o estado anterior: sua inocência.
Mas, para além deste efeito, há outros, como o direito a não produzir prova contra si mesmo, manter o silêncio sem que isso seja interpretado de forma prejudicial, e o princípio in dubio pro reo (NUCCI, 2015).
Princípio da presunção de inocência e in dubio pro reo:
O princípio in dubio pro reo diz respeito à exigência de que as decisões em casos penais sejam, sempre que houver dúvidas, em favor do réu – na dúvida, em favor do réu.
Embora guarde afinidade com o princípio da presunção de inocência, eles não se confundem.
MORAES (in Mossin, 2014), ensina:
[…] existe substancial diferenciação entre eles: enquanto o primeiro [presunção de inocência] sempre tem incidência processual e extraprocessual, o segundo [in dubio pro reo] somente incidirá, processualmente, quando o órgão judicial tenha ficado em dúvida em relação às provas apresentadas. Devendo então optar pela melhor interpretação que convier ao acusado.”
Princípio da presunção de inocência – exemplos:
O princípio da presunção de inocência pode repercutir em diferentes momentos das investigações e dos processos criminais.
Aqui temos alguns exemplos de decisões judiciais fundamentadas nessa garantia fundamental:
STF: Tema 1171
leia mais
Possibilidade de investigado em inquérito policial ou de réu em ação penal em andamento, não transitada em julgado, realizar matrícula e participar de curso de reciclagem de vigilantes.
Tese: Violam o princípio da presunção de inocência o indeferimento de matrícula em cursos de reciclagem de vigilante e a recusa de registro do respectivo certificado de conclusão, em razão da existência de inquérito ou ação penal sem o trânsito em julgado de sentença condenatória.
STJ: Jurisprudência:
[…] 4. O Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que o termo inicial da prescrição da pretensão executória é o trânsito em julgado da condenação para ambas as partes, em respeito ao princípio da presunção de inocência. 5. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça alinha-se ao entendimento do STF, estabelecendo que a prescrição da pretensão executória pressupõe a possibilidade de execução da pena, o que só ocorre após o trânsito em julgado para ambas as partes. […] (RHC n. 178.900/CE, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 18/2/2025, DJEN de 13/3/2025.)
[…] A jurisprudência do STJ estabelece que, para agentes primários, com bons antecedentes e pena fixada no mínimo legal, a aplicação da figura privilegiada deve ocorrer na forma mais benéfica, consistente na substituição da pena privativa de liberdade por multa. No caso, o Tribunal de origem justificou a opção pela substituição da pena de reclusão por detenção com base em condenação provisória, o que viola a Súmula 444/STJ, que veda a utilização de inquéritos ou ações penais não transitadas em julgado para agravar a situação do réu. […] (AREsp n. 2.548.512/RS, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 18/2/2025, DJEN de 25/2/2025.)
[…] 10. O Plenário do Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do HC n.º 84.078/MG, Rel. Ministro EROS GRAU, decidiu que a custódia cautelar só pode ser implementada se devidamente fundamentada, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal. Tal orientação deve ser adotada por todos os Tribunais Pátrios, como forma de se tornar mais substancial o princípio constitucional da presunção de inocência. Na hipótese, o direito de recorrer em liberdade foi negado, ao fundamento de que a liberdade provisória do Paciente e do corréu poderia trazer “concretos prejuízos à garantia da ordem pública, especialmente face às suas culpabilidades e às circunstâncias do crime”. Tendo em vista que tais circunstâncias judiciais foram afastadas na dosimetria da pena, por ausência de fundamentação idônea, é o caso de conceder o direito de recorrer em liberdade. […] (HC n. 492.788/CE, relatora Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, julgado em 3/3/2020, DJe de 16/3/2020.)
[…] A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que inquéritos e ações penais em andamento não servem como fundamento para a valoração negativa dos antecedentes, da conduta social ou da personalidade do agente, em respeito ao princípio constitucional da presunção de inocência. […]” (HC 142241 RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 15/12/2009, DJe 01/02/2010)
Conclusão:
Neste texto sobre a presunção de inocência observamos que ela se trata de um princípio extremamente importante, e que, na realidade, caminha de mãos dadas com a segurança pública, por evitar que o Estado condene sumariamente o primeiro suspeito, o que só favorece o verdadeiro culpado.
Sua existência é vital para garantir julgamentos justos, baseados em provas sólidas e respeitando o devido processo legal!
Mais conhecimento para você
- Reconvenção no Novo CPC: O que é, cabimento e como funciona
- Direito Imobiliário: o que é, como atuar e oportunidades na área
- Adjudicação no Novo CPC: o que é, quem exerce e regras gerais
- Entenda o que é coação e quais os requisitos para provar
- Entenda como funciona e quando ocorre a busca e apreensão
- Medidas cautelares diversas da prisão: o que é e quais são elas?
Assine grátis a Aurum News e receba uma dose semanal de conteúdo no seu e-mail! ✌️
Conheça as referências deste artigo
MENDES, Gilmar F. Comentários À Constituição do Brasil – Série IDP – 3ª Edição 2023. 3. ed. Rio de Janeiro: Saraiva Jur, 2023. E-book. p.422. ISBN 9786553625044.
NUCCI, Guilherme de S. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais – 4ª Edição 2015. Rio de Janeiro: Forense, 2015. E-book. p.333-367. ISBN 978-85-309-6296-8.
NUCCI, Guilherme de S. Curso de Direito Penal – Vol. 1 – 8ª Edição 2024. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024. E-book. p.58. ISBN 9786559649228.
AGRA, Walber de M.; BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge. Comentários à Constituição Federal de 1988 – 1ª Edição 2009. Rio de Janeiro: Forense, 2009. E-book. p.222. ISBN 978-85-309-3831-4.
MOSSIN, Heráclito A. Garantias Fundamentais na Área Criminal. Barueri: Manole, 2014. E-book. p.102. ISBN 9788520448519.
Advogado (OAB 75.386/PR e 22.455A/MS), sócio do Alencar & Pressuto em Campo Grande-MS. Bacharel em Direito e especialista em Ciências Criminais pela PUC/PR. Possui larga experiência em procedimentos de inclusão em penitenciárias federais. Hoje atua exclusivamente na assessoria empresas, urbanas...
Ler maisDeixe seu comentário e vamos conversar!
Deixe um comentário